quinta-feira, 22 de julho de 2010

Meu marido foi pescar

A essas horas meu marido está viajando num ônibus fretado, cheio de velhos amigos, a caminho do rio Cristalino, estado de Goiás. Estão todos  felizes: vão pescar. Há exatamente um ano, fiz esta mesma viagem com ele e um casal de amigos. Foi bom enquanto durou, aprendi muita coisa, vi maravilhas incríveis da natureza do Brasil. 
Mas, para mim, já está de bom tamanho: 
pescaria é mesmo coisa de homem. 

Reli o texto que escrevi quando voltamos dessa viagem no ano passado e foi divertido relembrar nossas aventuras. O texto é um pouco longo, mas acho que vale a pena publicá-lo assim mesmo. 
Aqui vai:




“O que?! Ainda faltam mais três horas e meia de viagem  nesta canoa a motor, descendo o rio Araguaia sem parar, a cinquenta quilômetros por hora? E ainda  vou ter que ir sentada nesta cadeira de plástico, sem qualquer proteção contra o sol?”

Eu mal podia acreditar no que ainda nos aguardava ali em Luiz Alves, povoado nos confins de Goiás. Com o corpo moído e as pernas clamando por uma boa esticada, eu sinceramente imaginava que tivéssemos chegado ao ponto final do trajeto e que logo teria início minha primeira experiência de pescaria – atividade que sempre me pareceu meio misteriosa, pertencente ao mundo masculino, cujos prazeres me escapavam.  Afinal,  desde o nascer do sol, quando saímos do nosso hotel de Goiás Velho,  já tínhamos percorrido mais de seis horas de estrada,  em boa parte das quais fui obrigada a viajar comendo poeira no banco traseiro, disputando com o volumoso equipamento pesqueiro o direito de encontrar uma fresta na janela lateral que me permitisse admirar de vez em quando a bela paisagem do cerrado goiano.

“Então você não leu com cuidado o itinerário que eu preparei, com todos os detalhes dessa viagem?”,  indignou-se o nosso guia e amigo, surpreso com minha surpresa.

Não, eu realmente não tinha lido direito. Mas estava tudo escrito lá, direitinho: saída de Goiás Velho a tal hora, chegada à pousada às margens do Cristalino (afluente do rio Araguaia) a tal hora, num percurso de carro e barco. Viu? Era só fazer as contas, ora...

Nosso guia estava certo: ainda faltavam mesmo três horas e meia de viagem, debaixo de sol, trepidando pelo grande Araguaia  naquela pequena canoa.
“Vamos lá! Tudo pronto? Já passaram protetor solar? E repelente de inseto?”


OK, logo percebi que, dali para a frente, seria melhor seguir  as regras do jogo sem questionar coisa alguma. Quando fomos apresentados ao piloteiro Negão, que nos próximos três dias dirigiria a nossa canoa e nos iniciaria nos mistérios da pesca esportiva, já me sentia humildemente rendida diante da grandeza selvagem daquela região. Percebi que minha segurança pessoal estava nas mãos daquele homem e, se eu realmente pretendesse voltar a Luiz Alves no final da nossa temporada de pescaria, deveria obedecer aos seus comandos.


Negão era um homem de uns quarenta anos de idade e pele da cor da terra das margens do Araguaia - bem mais clara do que o apelido fazia supor. Sentia-se claramente à vontade dentro e fora da canoa.  Quando em terra, caminhava com firmeza, deixando pegadas fundas atrás de si. Tinha olhos aguçados, gestos ágeis. Era um homem de poucas palavras, mas, sempre que falava, sorria com simplicidade e sem constrangimento.  Resolvi confiar nele.


O barulho do motor e do vento que batia contra os nossos rostos nos impedia de conversar.  Isso foi  até bom, pois durante o trajeto pudemos nos concentrar na extraordinária beleza da região, enquanto a canoa avançava rio acima. 


O reflexo das nuvens e da vegetação na superfície do rio criava verdadeiras pinturas dançantes.  Bandos de papagaios, garças e tucanos  cruzavam a nossa frente.  Na água, botos, tartarugas e jacarés apareciam e desapareciam por todos os lados, como num passe de mágica. Vida, vida e mais vida... Minha nossa, quanta vida!

Depois da primeira hora de viagem, parei de tirar fotos. Percebi que seria inútil tentar digitalizar tanta beleza natural.

Quando finalmente nos aproximamos da nossa pousada no Cristalino, o sol começava a se por, inundando toda a região de luz dourada.  Tudo parecia tão impossivelmente bonito que me deu vontade de rezar...


Confesso que meu rompante espiritual se desfez no momento em que saltamos da canoa e uma nuvem de muriçocas  nos rodeou, como se quisessem nos dar as boas vindas.

Além das muriçocas, também vieram nos recepcionar no ancoradouro  da pousada dois outros habitantes locais: um desengonçado e simpático casal de jaburus, com suas pernas finas, olhar curioso e nenhum medo dos seres humanos.
 
Sem desperdiçar palavras, o Waldir, gerente da pousada, nos entregou as chaves dos quartos – franciscanamente mobiliados e pequenos, mas limpos.
De repente tive a sensação de ser ali uma visitante incômoda, uma invasora em terras estrangeiras.  É que tudo naquela região é feito para receber  “fraternidades” de pescadores,  quase todos representantes do sexo masculino.  São homens que viajam agrupados em alegres bandos suarentos, despojados e felizes por estarem longe das suas mulheres e das limitações e desconfortos que lhes são impostos no dia a dia pelo mundo delas.
Ali naqueles confins, eles podem pescar, beber cerveja, contar piada, contar vantagem, contar mentira, falar palavrão, arrotar, soltar pum e se sujar à vontade durante o dia. À noite, se lhes der na telha,  podem até dormir com a mesma roupa no corpo sem que ninguém lhes chame a atenção por isso.
É o mundo dos homens, onde aqueles pescadores periodicamente vão buscar refúgio para vivenciar e celebrar sua masculinidade. Imagino que, para muitos deles, o ato de “ir pescar” seja uma necessidade ancestral, um saudável rito de afirmação da tribo masculina. Só sei dizer que, no momento em que pisei naquela pousada do Cristalino, percebi claramente que aquele mundo não era o meu. E agora, José?

Mais do que uma viagem de férias, esta talvez tenha sido uma curiosa viagem ao interior de mim mesma. Mergulhada naquele mundo masculino e estranho, timidamente saí em busca de um canto qualquer onde eu pudesse me acomodar e simplesmente ficar observando, calada.

Sem jamais me sentir plenamente à vontade, encontrei este canto dentro de mim mesma, num inesperado e repentino sentimento de gratidão aos dois homens diretamente responsáveis por minha presença ali: o nosso amigo, que não só idealizou e planejou toda a viagem, como também nos conduziu de carro por mais de 1600 quilômetros através do cerrado goiano; e meu marido, que tem sacolejado ao meu lado em todas as viagens dos últimos quarenta anos, pelas estradas da vida.

De repente me dei conta: o que esses dois homens fizeram, quando decidiram convidar suas respectivas esposas para acompanhá-los nesta viagem pelo estado de Goiás, rumo ao coração do mundo masculino, foi na verdade um ato de amor e generosidade.  Eles abriram as portas do seu castelo e nos deixaram entrar.

Foi bom ter entrado nesse castelo. Ali pude entender melhor as diferenças entre o masculino e o feminino, aceitando-as com simplicidade.  Somos obviamente diferentes e complementares – e só. Assim é, sempre foi e assim será. Que bom!

Nesta viagem, descobri que a pescaria faz parte do mundo dos homens. Como mulher, posso participar dela de vez em quando – e até me divertir bastante nessa atividade - mas jamais com o mesmo entusiasmo deles. Fui chegando a esta taxativa conclusão aos poucos, à medida que tomava conhecimento da enorme quantidade de perigos que corríamos pelo simples fato de estarmos naquele lugar.

Os perigos do rio Araguaia são grandes e reais. Basta olhar com alguma atenção a superfície da água para qualquer um de nós avistar, sem grande dificuldade,  o brilho dos olhos de um jacaré ou a sombra sinistra de um peixe de imensas proporções, que  nos faz considerar sobre a estabilidade da canoa na qual viajamos.

Em terra firme, os perigos são diferentes,  nem por isso menores. Aquele solo em que estávamos hospedados é o território natural da onça pintada e também da queixada, espécie de porco selvagem, que não costuma fugir de confrontos com o homem.

Mas o perigo maior de todos – conta-nos o nosso piloteiro – é a enorme quantidade de troncos de árvores submersas, que provocam acidentes, muitos deles fatais, com as canoas que transitam pelo rio em alta velocidade.  As histórias sobre o desaparecimento de pescadores experientes naquelas águas são quase tão abundantes quanto as piranhas que vivem no rio. 

“Mas não se preocupem”,  tenta tranquilizar-nos Negão, enquanto acelera o motor da canoa.  “Eu conheço todos os troncos daqui.”

Ah, bom...

Com tantos perigos à minha volta, quase não me reconheci quando voltei extasiada da minha primeira pescaria e corri para escrever no meu diário de viagem,  como se não pudesse acreditar no que estava acontecendo comigo: “TÔ GOSTANDO DE PESCAR!!!” - assim mesmo, em letras maiúsculas e com três pontos de exclamação.  Naquele primeiro dia, havia fisgado uma corvina, um candiru e um mandubé. Estava me sentindo gloriosamente bem sucedida e, para minha surpresa, sem nenhuma pena dos peixes.

Mas o melhor aconteceu na parte da tarde, quando pesquei uma imensa e bela pirarara, com cerca de vinte quilos! O peixão lutou, bufou, quase me levou para dentro do rio junto com ele. Tive que fazer uma força descomunal para manter firme a vara e recolher a linha com o molinete. Finalmente, depois de uns vinte minutos que me pareceram uma eternidade, consegui dominá-lo.  Meu coração quis pular pela boca quando vi o tamanho do peixe que se debatia na ponta do anzol!  


Estranhamente não senti pena do bravo animal naquele momento, mas fiquei  aliviada quando o devolvi  à água do rio e ele saiu nadando, ondulando apressadamente aquele imenso corpo amarelo e vermelho, quase como se nada lhe houvesse acontecido.

Finalmente eu começava a entender... Então era isso que “eles” sentiam quando iam pescar! Eu tinha entrado no castelo dos homens e observado o que havia ali dentro, com atenção e respeito.

E agora, depois de fisgar mais peixes do que eu me imaginava ser capaz e de tirar todas as fotografias que eu havia desejado,  já estava pronta para ir-me embora e voltar para o conforto e a domesticidade do meu mundo feminino. Ufa.

2 comentários:

Leila Castilho disse...

Ei Mônica,
Adorei o seu texto !
Consegui me transportar para este lugar maravilhoso, mas realmente deve ter sido dureza para você.
Mas penso que de todas as situações da vida aprimoramos nossa sensibilidade e adquirimos a sabedoria e a humildade necessária para sabermos qual é o nosso limite.
Grande beijo carinhoso
Leila

Sara disse...

I Há alguns anos tive a sorte de fazer uma viagem semelhante, espero repeti-lo eu também gostaria de viajar para a Argentina para dizer que você pode fazer uma boa pescaria, espero chegar lá um apartamentos mobiliados buenos aires