segunda-feira, 1 de julho de 2019

A bronca do mestre budista


Levar bronca faz parte do crescimento de qualquer ser humano. Já levei várias ao longo da vida e sempre aprendi muito com elas. Mas a bronca imerecida que recebi há poucos dias durante uma cerimônia num templo budista chinês de Toronto me pegou de surpresa e me deixou desconcertada por um bom tempo.

O templo Cham Shan é um vistoso complexo de diversas construções com salas, altares, incenseiros e imensas estátuas para devoção, práticas e estudos budistas. Aberto sete dias por semana ao público, o templo fica a poucas quadras da casa de minha filha em Thornhill, na grande Toronto, onde vim passar algumas semanas.



Assim que cheguei na cidade, fui visitar o templo, curiosa para saber o que acontecia por lá. Apesar de todos os cartazes estarem escritos em caracteres chineses e apenas uma pequena parte deles com tradução em inglês, consegui decifrar que às terças e sextas-feiras havia uma sessão de cânticos zen, seguida de uma meditação andante e outra silenciosa. Não entendi bem o significado de “meditação andante”, mas isso não me preocupava. O problema era a duração daquela sessão: duas horas! Será que eu aguentaria permanecer tanto tempo assim numa prática para a qual eu não tinha sido preparada, num grupo de pessoas que eu não conhecia e que se comunicavam numa língua que eu não falava?



Peggy, uma simpática voluntária chinesa do templo que me viu parada diante de um enorme cartaz, se aproximou de mim e resolveu me ajudar. Por algum motivo inexplicável, ficamos logo muito à vontade uma com a outra. Mesmo com certa dificuldade de se expressar em inglês, Peggy conseguiu me transmitir informações valiosas sobre como me comportar adequadamenjte nas atividades do templo. Recorrendo de vez em quando à linguagem corporal, conversamos bastante e também nos divertimos uma com a outra neste esforço universal de comunicação  com a ajuda das mãos. Graças ao incentivo da minha nova amiga, dois dias depois lá estava eu de volta ao templo, toda pronta e confiante para participar das duas horas de cânticos e meditação zen.


Minha autoconfiança murchou rapidamente quando cheguei ao local da sessão em cima da hora e não vi a Peggy no grupo de uns quarenta chineses que já haviam começado a entoar os cânticos em mandarim.  Estavam todos vestidos com uma simples túnica marrom, perfilados ao redor de uma majestosa imagem dourada do Buda no centro da sala. À frente do grupo, o mestre budista comandava as atividades com uma autoridade visivelmente marcada pela cor da roupa: suas vestes eram as únicas ali que, além da cor marrom, tinham também umas pregas em amarelo-dourado vibrante.

E agora, o que faço para entrar nesse grupo? - pensei, acreditando que o cântico não duraria mais que alguns poucos minutos e logo começaria a prática da meditação. Uma senhora muito gentil apareceu para me conduzir ao local onde eu deveria ficar de pé, junto aos outros participantes e, sem dizer palavra, me entregou um maço de folhas xerocadas, cobertas de alto a baixo com caracteres chineses. Notei que, além de mim,  apenas uma outra moça não vestia o traje marrom. Menos mal, pensei, pois pelo menos tinha companhia. Compreendi também que nós duas éramos as únicas pessoas não-iniciadas naquele grupo, sendo que eu claramente era a última dos últimos, uma vez que não entendia nada de mandarim e ela, sim.



Percebendo que eu estava perdida, a gentil senhora indicou para mim o trecho que o grupo estava cantando no meio daquelas centenas de caracteres chineses. Olhei com mais atenção para o local apontado por ela e descobri com certo alívio uma representação fonética das palavras chinesas em alfabeto latino: huang, pin, li, shen... Tentei então com toda a minha determinação e boa vontade imitar aqueles sons e acompanhar de alguma forma o canto do grupo, até então bem cadenciado. De repente, as vozes começaram a cantar cada vez mais rápido, atingindo um ritmo acelerado de rodopio doido. Foi aí que me perdi por completo. Desisti de cantar.

Sempre com aquele inútil papel na mão, baixei os braços e fechei os olhos. Respeitosamente, tomei a decisão de começar ali mesmo minha meditação, rendendo-me por completo à beleza da melodia mântrica à minha volta. Mergulhada no meu mundo interior, fui bruscamente trazida de volta à realidade daquela sala pela voz impaciente do Mestre, bem ali ao meu lado. Eu não podia de maneira alguma baixar os braços durante o cântico, repreendeu-me ele. Aquilo era errado. Se eu quisesse permanecer ali, tinha que manter o papel diante dos meus olhos o tempo todo. Caso contrário, eu deveria sair do grupo e me sentar em alguma das cadeiras que estavam ali junto à parede.

Poucas broncas que levei em minha vida foram tão inesperadas e injustas. Eu estava lá dando o melhor de mim - ou pelo menos assim achava. Além do mais, tinha sido amavelmente convidada por uma voluntária do templo a participar daquela sessão. Sentar numa daquelas cadeiras seria humilhação suprema. Não olhei para os lados, mas tinha certeza de que quarenta pares de olhos estavam fixados em mim naquele momento.

Como o Mestre me ofereceu a opção de permanecer ali com os olhos abertos e o papel corretamente na mão, mesmo sem conseguir cantar nada, tomei a decisão de ficar onde estava. O canto continuou normalmente e - surpreendida comigo mesma - eu me senti muito feliz e tranquila com minha decisão de ficar no grupo. A melhor parte da sessão ainda estava por vir! Que bom que não fui embora antes da meditação andante começar. Caminhar em fila indiana, com toda a atenção voltada ao momento presente, foi uma experiência muito nova e prazerosa para mim. E o cântico desta parte da prática - felicidade suprema! - tinha só sete sílabas que se repetiam incansavelmente: Namo Ami Ado Huang... Facinho, facinho!

Nem senti o tempo passar. Fui embora poucos minutos antes do final, discretamente e sem falar com ninguém, seguindo rigorosamente as dicas de comportamento zen que minha amiga Peggy me havia dado poucos dias antes. Com as mãos postas em posição de humildade, me dirigi à saída em marcha à ré (para não dar as costas ao Buda) e fiz uma simples reverência ao Grande Mestre.

Voltei para casa leve e feliz comigo mesma. Qualquer dia vou lá no templo de novo.










sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um anjo chamado Maurício



Tem gente que não acredita em anjos. Pois eu, sim. Há poucos dias um deles passou voando pela minha vida. Ele se chama Maurício e me fez ver que, apesar de todas as evidências em contrário, ainda existe muita gente de bom caráter nesse país.

Eu tinha acabado de chegar em casa depois de um dia longo. Antes de jantar, resolvi arrumar um pouco as minhas coisas. De repente senti o chão fugir dos meus pés: a carteira de dinheiro que estava dentro da bolsa, com todos os meus documentos, havia sumido!

Não adiantou revirar a bolsa pelo avesso, muito menos rezar para São Longuinho, prometendo dar três pulinhos. A carteira tinha sumido mesmo. Eu tinha certeza de ter estado com ela na mão poucos minutos antes, para retirar o dinheiro e pagar a corrida do táxi que me levou até perto de casa. Devo ter deixado a carteira cair no chão do carro, pensei.

Mas como entrar em contato com o motorista daquele táxi, entre os mais de 300 mil taxistas da cidade que estão circulando por aí?

Alarmada, fiz rapidamente uma lista mental de todos os documentos que trazia na bolsa: carteira de identidade, de motorista, de plano de saúde, do clube, do metrô, cartões de banco... Ai, não! Quantos dias de trabalho teria que gastar e quantas filas teria que encarar, só para refazer aquilo tudo?

Mentalmente esgotada, fiquei paralisada por mais de uma hora, sem saber a quem recorrer. De repente, do outro lado da casa, toca o celular do meu marido e ouço a voz dele ao telefone, todo animado, conversando com um amigo:

- Oi, tudo bem com você? O quê? Encontraram a bolsa da Monica? Com quem? 

O amigo não sabia explicar por quê, mas um tal de Maurício lhe havia telefonado para dizer que estava com todos os meus documentos em mãos.

Na mesma hora liguei para o número do celular que ele havia passado, sem entender direito o que estava acontecendo. A voz do Maurício me soou como a de um habitante de outras esferas planetárias:

-    Encontrei sua carteira no chão do posto de gasolina quando fui abastecer meu carro e fiquei um tempão ali, tentando um meio de localizar a senhora para poder lhe entregar tudo direitinho. Liguei para o seu consultório de dentista, clube, academia de ginástica, mas não consegui falar com ninguém - até encontrar um papelzinho com o telefone daquele amigo do seu marido. Como já estava ficando tarde, resolvi deixar um recado e ir para casa. Todos os seus documentos e todo o seu dinheiro estão bem guardados aqui comigo.

Como eu não conseguia articular nenhuma palavra com sentido, desconfio que Maurício sentiu pena da minha aflição, pois ele continuou: 

-    Olha, estou dirigindo a caminho de casa, já quase entrando no túnel Rebouças, mas posso fazer um retorno para encontrá-la naquele mesmo posto de gasolina daqui a pouquinho.

-    Sim, sim!!! - consegui dizer, já um pouco refeita da surpresa. - Estou indo para lá agora! Mas como é que eu vou saber quem você é?

-    Vou estar dentro do meu carro, um Corsa preto, estacionado bem na saída do posto.

Sem pensar nos riscos de um encontro à noite com um completo estranho num posto de gasolina, saí voando.  Quando avistei o carro preto no local combinado, confesso que de repente senti uma certa insegurança. Afinal, quem seria este Maurício? O que ele me pediria em troca de um favor tão grande?

Mas, no momento em que o vi saindo do carro, com aquele seu sorriso franco e tranquilo, meus medos desapareceram. Abracei-o como se fôssemos amigos desde sempre.

-    Pode conferir. Está tudo aí dentro - documentos, dinheiro, todas as moedinhas. A senhora me desculpe, mas tive que abrir a carteira para tentar descobrir alguma forma de identificar o dono e conseguir devolvê-la. Quando vi a foto daquela menininha linda no meio dos seus documentos…   aquilo mexeu comigo. Não ia sossegar enquanto não localizasse a senhora, pois senti que a mesma coisa poderia acontecer comigo ou com a minha esposa!

O sorriso de minha neta Aninha, naquela foto 3x4 que sempre trago comigo, nunca me pareceu tão mágico!

-    Maurício, você tem filhos? - perguntei, juntando todas as notas que havia na minha carteira.

-    Tenho duas filhas - e logo começou a falar delas todo orgulhoso, ressaltando o bom desempenho escolar das suas meninas.

-    Então compre um presente para elas com este dinheiro…

Nem consegui terminar a frase, pois Maurício me interrompeu bruscamente:

-    De jeito nenhum! Não fiz mais do que minha obrigação.

E acrescentou, com a tranquilidade segura dos justos:

-    Deus já me deu tudo de importante que eu tenho na vida: duas filhas maravilhosas, uma esposa incrível, um emprego de que eu gosto muito. Não preciso de mais nada.

E com isso se despediu gentilmente de mim, desejando ainda que Deus me acompanhasse de volta para casa.

Poucos dias depois, voltei a me encontrar com o Maurício na portaria da TV Globo, onde trabalha como cameraman. Desta vez ele aceitou meu presente singelo: uma torta de chocolate para ele levar para casa e curtir com a família. Que a vida lhes seja doce!

Anjos existem por toda a parte, mas nem sempre a gente os vê. 

Maurício e eu, na porta da TV Globo









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domingo, 30 de dezembro de 2018

Tantas coisas boas para contar sobre o Chile... mas uma surpresa me pegou!


O ano acabou e voltei do Chile com a cabeça cheia de novidades boas para contar. Foi uma viagem surpreendentemente rica - só que agora, sinto muito, não estou com vontade de falar nada disso.

Eu bem que poderia descrever longamente as paisagens de sonho da cordilheira, com seus vulcões cobertos de neve, belos e intimidantes, bem como o meu encantamento diante de tanta beleza natural... Mas agora não estou com cabeça para isso.  


Também poderia falar sobre a delícia que é tomar banho nas termas vulcânicas ao ar livre, com aquela água quentinha, jorrando das profundezas da terra... Mas agora este papo não vai rolar.


Eu poderia contar histórias sobre as pessoas incríveis que conhecemos em uma comunidade rural mapuche no sul do país, onde passamos um dia inteiro conversando e aprendendo sobre este povo nativo, o único de toda a América que jamais foi subjugado pelos espanhóis... Mas agora, sinto muito, não estou a fim de contar.


Eu poderia relembrar o deslumbramento que sentimos quando avistamos o Salto do Huilo-Huilo jorrando aquele montão de água fresca diante de nós, com arco-íris e tudo... Mas agora não dá.


Eu poderia falar da imensa lua cheia que, depois de um dia inteiro de passeios e descobertas maravilhosas nos espiava bem de frente, na varanda do hotel... Mas agora, não.


Eu poderia falar sobre os muitos vinhos que bebemos e as gargalhadas que demos... mas, me perdoem, tudo isso vai ter que esperar.

A razão da minha perda de palavras para descrever uma viagem tão bela como esta foi o telefonema que recebemos do Canadá na véspera do Natal, de manhã bem cedinho. Do outro lado do mundo, a voz ensolarada da nossa filha Isabel inundou o nosso quarto de luz e amor: “Mãe, pai! Stephan e eu estamos grávidos!”

Pois era disso que eu queria lhes falar. Como pensar ou escrever sobre qualquer outra coisa? Para mim não há viagem, paisagem ou fotografia mais emocionante que esta notícia. Daqui a meros seis meses, nossos queridos filha e genro terão o seu primeiro bebê e nós, felizes espectadores deste presente da natureza, teremos a alegria renovada de sermos avós.

Gracias por todo, Chile! Muito mais do que recordações de uma bela viagem, o Chile nos trará sempre um sorriso de pura felicidade, escondido no coração.





quarta-feira, 16 de maio de 2018

As mentirinhas de Aninha: meu primeiro livro!


Responda depressa: o que é que você mais gostaria de fazer na vida?

Essa é uma pergunta que embatuca qualquer adulto mas, naquela tarde de contação de história ao ar livre, as crianças que estavam sentadas na grama diante de mim nem titubearam:

"Cavalgar em um dragão!"

"Voar pelo céu com um unicórnio!"

"Tirar uma foto do Papai Noel quando ele entrar na minha casa!"




Aqueles olhinhos brilhantes, cheios de entusiasmo diante das infinitas possibilidades da vida, foram para mim as cerejas do bolo daquela tarde feliz, que marcou o lançamento do meu primeiro livro infantil - As mentirinhas de Aninha. O evento aconteceu no Conecta Orgânica, um novo espaço de vivências e cursos em Araras, na serra de Petrópolis, com uma proposta de valorização dos artesãos locais e foco na sustentabilidade. Não poderia imaginar um local melhor para lançar meu livro,  rodeado pelo verde da Mata Atlântica, com a presença de amigos, numa bela tarde de sol!


A ideia do Mentirinhas surgiu há alguns meses, quando meu marido me desafiou com a pergunta inesperada: "O que é que você mais gostaria de fazer na vida?" Por alguns momentos fiquei paralisada com a imensidão daquela pergunta. Desnecessário dizer que nem me passou pela cabeça a ideia de vivenciar aventuras com dragões ou unicórnios.  Há poucas coisas mais assustadoras para mim do que me ver diante de uma página em branco, à espera de uma ideia inspirada.

Bem devagarinho, como um fio de Ariadne a me conduzir pelo labirinto de neurônios, aquela pergunta saiu à procura de uma ideia quase inatingível, meio mitológica, que dormitava desde sempre num porão escuro dentro de mim.  De repente a ideia inspirada apareceu: escrever um livro! E o que antes me parecia uma ideia fantasiosa, impossível, foi aos poucos criando forma - primeiro na mente, depois no papel.  E foi assim que alguns meses de trabalho no computador, contatos telefônicos, troca de e-mails com fornecedores e reuniões com o ilustrador Vitor Bellicanta, transformaram um sonho antigo nesta alegre realidade.


Cada vez que olho para as ilustrações do Vitor sinto vontade de rir. A simplicidade do traço nos transporta ao mundo infantil com um senso de humor delicado, revelando o olhar atento aos detalhes.

Terminada a contação da história, o evento continuou com uma oficina culinária com as crianças, onde preparamos deliciosas mentirinhas - biscoitos caseiros feitos com uma receita secreta de família. Receita que, por sinal (é bom que se diga), agora deixou de ser secreta porque está publicada no final do livro, para quem quiser experimentar em casa.




Desconfio que a história do livro já estava esboçada na minha cabeça desde meus tempos de criança. Uma vontade insaciável de viajar, conhecer novas culturas e interagir com pessoas diferentes sempre me acompanhou desde cedo. Por outro lado, as coisas simples da vida - como fazer biscoitos em casa - também me fascinavam muito. E quando a vida me presenteou com a chegada de Ana, a neta querida, misturei todos esses ingredientes num grande caldeirão e deixei-os cozinhar em fogo lento até se transformarem nesta poção mágico-literária, que todos vocês estão desde já convidados a provar.

Quem quer uma provinha?

...ooo000ooo...

Quem não pôde ir ao lançamento de Araras terá nova chance de participar do lançamento do Mentirinhas, desta vez na cidade do Rio de Janeiro. Vai ser sábado, dia 9 de junho, às 16 horas, na Livraria Malasartes. 
A livraria possui uma maravilhosa coleção de livros infanto-juvenis e fica no Shopping da Gávea, 3o. piso, à rua Marquês de São Vicente 52.  




domingo, 9 de abril de 2017

Cada dia mais jovem - um retrato de minha mãe

Acordei  com a sensação de ter dormido mais do que deveria. Ainda deitada, lembrei num sobressalto de que, nesse dia, estava fazendo oito anos que minha mãe se havia ido. "Que estranho, parece que já faz mais tempo", pensei comigo mesma, ainda sonolenta, esforçando-me mentalmente para confirmar contas e datas. Já com os pés firmes no chão, estanquei num susto: "Epa! Não faz somente oito, mas dezoito anos!" Refiz as contas e vi que, de fato, já se havia passado todo aquele tempo desde que mamãe e eu havíamos estado juntas pela última vez. Como foi que pude me enganar numa conta dessas - um erro de nada menos do que uma década inteira, a contar de uma data tão importante na minha vida?

O passar do tempo tem uma relatividade afetiva que nem todas as teorias einsteinianas são capazes de desvendar. Dez anos a mais ou a menos causam grande impacto em qualquer agenda pessoal, mas agora descobri que podem significar muito pouco no nosso calendário emocional.

Passei o dia pensando naquela mulher alegre, espontânea e bem humorada, que me trouxe ao mundo. Batizada como Maria do Carmo, era chamada pelos pais e pelos cinco irmãos de Carmita e, por muitos de seus amigos, conhecida simplesmente como Mariazinha.

Como era desejável entre as mulheres de sua geração, mamãe se casou cedo e engravidou logo em seguida, deixando o trabalho de secretária no recém-inaugurado Hospital dos Servidores do Estado para cuidar da família. Antes mesmo de meus pais completarem um ano de casados, eu já havia nascido. Poucos dias depois de completar meu primeiro ano de vida, minha irmã Angela nasceu. Não me lembro de nenhum dia de minha infância em que mamãe não estivesse lá ao nosso lado, disponível e atenta.

Mamãe era divertida. Gostava de participar das nossas brincadeiras e, muitas vezes, era mais "moleca" do que as próprias filhas. Lembro-me especialmente de uma noite em que papai estava dando plantão no hospital e, depois do jantar, mamãe colocou na "vitrola" um disco de marchinhas de carnaval que ela adorava. Ficamos as três dançando na sala, cantando alto e rindo às gargalhadas até tarde, muito além do horário previsto - jamais discutido ou negociável - da gente ir para a cama. Foi uma das melhores noites da minha infância.

Nas férias de verão, era ela quem nos levava todos os dias à praia. No mar, quando a gente insistia em avançar de encontro à rebentação, ela nos levava "até o fundo", onde as ondas nos davam imensos "caldos", dos quais emergíamos em risadas resfolegantes, os fundilhos de nossos maiôs pesados de areia.

Às vezes mamãe deixava à mostra seu lado inseguro - o que, aos olhos de uma filha, tinha um efeito intrigante. Orgulhava-se, por exemplo, de ter passado "de primeira" no exame para obter a carteira de motorista, mas depois disso jamais teve coragem de dirigir um carro sozinha.

O prazer de cozinhar lhe veio mais tarde na vida, já com as filhas casadas, e mudou a rotina da família. Mamãe preparava almoços caprichados nos fins de semana, em geral com pratos que lhe traziam boas lembranças da infância no Maranhão. Farinha d'água, molho de pimenta ardida e doce de sapoti eram motivo de intermináveis conversas à mesa. Ninguém fazia fritada de camarão ou caruru melhor do que ela.

A chegada dos quatro netos encheu sua vida de novas cores e alegrias. Bordou carinhosamente lindos tapetes arraiolos para os quartos dos bebês, pintou camisetas com estampas engraçadas, jogou Mico Preto e biriba com a garotada, assistiu dezenas de vezes ao musical Noviça Rebelde em videocassete e às aventuras dos Trapalhões e do Sítio do Picapau Amarelo na TV. O banho na banheira da vovó era outra atividade memorável na rotina familiar das crianças.

Com o passar dos anos, vieram problemas de saúde e preocupações diversas que, aos poucos, invadiram seu coração. Poucas semanas depois de completar setenta anos de idade, ela faleceu de repente, sem tempo para se despedir nem dar trabalho a ninguém. Recebi a notícia inesperada pelo telefone de minha casa na Flórida, bem na hora do jantar. Não tive tempo a perder, nem mesmo para absorver a ideia completamente absurda de que minha mãe tinha morrido naquele dia. Joguei apressadamente algumas roupas na mala e rumei direto ao aeroporto. Em pouco mais de duas horas, já estava a bordo do avião que me levaria ao Rio de Janeiro, justo a tempo para o enterro. Sozinha e no escuro, viajando a noite inteira acordada, pude finalmente fazer uma parada interior para, emocionalmente exausta, tentar absorver o que estava acontecendo ao meu redor.

Tudo isso aconteceu há exatos dezoito anos. Ou seriam mesmo só oito? De qualquer maneira, que diferença faz medir o tempo de calendário com precisão absoluta, quando o tempo do coração faz o que bem entender?

De repente me dou conta de um fato curioso: à medida que o tempo avança, a lembrança que tenho de minha mãe vai-se modificando. Rugas e lágrimas dissolvem-se aos poucos na minha memória até desaparecerem por completo.  E mamãe se torna cada dia mais jovem, mais bonita e mais feliz.



Essa transformação gradual, tão delicada e bem vinda, me tranquiliza o coração.








domingo, 29 de janeiro de 2017

Entre tapas, churros e chatos


Recentemente voltei de uma viagem de dez dias a Madrid, Toledo e Valencia, para a qual não tive muito tempo de me preparar.  Não era a primeira vez que visitava a Espanha e, das outras vezes, havia feito meu dever de casa diligentemente, vasculhando informações em livros, filmes e artigos publicados sobre este país encantador e sempre surpreendente.  Autoconfiante no meu castelhano (talvez um pouco demais!) e nas boas experiências passadas, fiz a mala de qualquer jeito e rumei ao aeroporto, despreocupada e feliz. Porém - há sempre um "pero" quando se fala a língua dos espanhóis - por mais que a gente se prepare antes, a Espanha sempre nos faz sentir como um marinheiro de primeira viagem.

Compartilho aqui algumas observações culturais e gastronômicas que fiz durante esta curta temporada, que provam, mais uma vez, que a Espanha é um universo infindável de descobertas deliciosas para o estrangeiro.
          
         1) Ao contrário do que eu supunha - depois de ter lido reportagens sobre a crise financeira que atravessa a Espanha desde 2008, com taxa de desemprego superior a 25% e um grande número de jovens que têm deixado o país em busca de melhores condições de trabalho -, o que vi nas ruas das cidades que visitei não reflete absolutamente o clima de um país em crise. Os espanhóis parecem se divertir bastante,  frequentam bares e restaurantes alegremente até altas horas da madrugada, não se preocupam com a segurança nas ruas e utilizam meios de transporte público perfeitamente confiáveis a qualquer hora do dia ou da noite. Não vi crianças vendendo balas ou pedindo esmolas.  Avistei alguns grafites na periferia das cidades, mas não vi nenhum edifício do centro pichado.

         2)  Os espanhóis são muito diretos, falam o que lhes dá na telha, sem subterfúgios, em alto e bom som.  Adoro isso! Imagino que, para muitos estrangeiros, esse jeito franco pode vir a ser confundido com grosseria - mas é apenas uma característica da cultura espanhola. No fundo, são bem afáveis. Eles têm uma mania semelhante à dos brasileiros de tocar fisicamente a pessoa com quem estão falando (um tapinha nas costas, um pequeno toque no braço) para demonstrar certa atenção especial. Há pessoas que detestam esse tipo de invasão do espaço privado, mas o espanhol nem liga e vai tateando quem ele bem entender. Sinceramente, acho que eu me daria muito bem se vivesse entre eles.

         3) A vida noturna em Madrid é uma das mais animadas (e econômicas) de toda a Europa. A “noite”, aliás, começa bem depois do sol se por.  Notei que eles dizem “sete horas da tarde”, em vez de “sete horas da noite”. Pessoas de todas as idades (inclusive crianças) circulam ruidosamente pelas ruas da cidade, conversando, rindo e cantando, até se cansarem. É invejável o jeito guloso dos espanhóis de curtirem a noite.  Quando saem de casa para qualquer programa, eles sempre passam antes em algum bar para tomar pelo menos uma taça de vinho ou cerveja e mordiscar tapas. "Nós não sobreviveríamos sem nossos bares", me disse um espanhol. Numa noitada típica, percorrer diversos bares de tapas, um após o outro, é o próprio programa. Parece algo “normal”, mas não é. Desafio qualquer turista brasileiro a fazer isso sem a ajuda de um amigo espanhol! Muito provavelmente o viajante voltará ao quarto de hotel exausto e faminto. É que há uma “técnica” toda especial que só eles entendem de se pedir alguma coisa nos balcões, em geral apinhados de gente comendo, bebendo e gritando.

Bar de tapas El Lacón, em Madrid
É preciso, antes de mais nada, que o turista tenha conhecimento de um fato perturbador: o espanhol não faz fila. Sério. Os atendentes dos balcões só prestam atenção aos clientes que lhes dirigem a palavra gritando. Além da gente ter que brigar para ser ouvido, tem que se esforçar para pronunciar corretamente o nome daqueles tapas que estão no cardápio, mas que a gente nunca viu antes.  Para complicar, alguns desses nomes não estão sequer escritos em castelhano, mas em algum dos outros muitos idiomas ou dialetos falados no país. Palavras como “pintxos” (espetos bascos) e “espencat” (tapa valenciano) aparecem em perfeita harmonia ao lado de “patatas bravas”. Levei algum tempo para perceber que “chato” não era o que eu pensava, mas uma pequena dose de vinho e que “vaso de chato” é um diminuto copo para degustação.

         4) Confesso que alguns tapas não me apeteceram quando li seus nomes no cardápio – como “oreja de cerdo” (orelha de porco) e “matambre de ternera” (mata-fome de vitela), mas os entendidos garantem que são muito saborosos. Em contrapartida, me deliciei à vontade com as tradicionais “gambas al ajillo” (camarões no alho), “croquetas de jamón” (croquetes de presunto), “queso manchego” e inesquecíveis porções de “jamón ibérico” (presunto curado, orgulho da região). Aprendi que “tostas” correspondem às nossas conhecidas “bruschettas” e são sempre uma boa pedida para acompanhar o vinho ou a cerveja.


Tostas no Mercado San Miguel, Madrid
         5) Para a gente se aquecer num dia frio, há poucas bebidas mais deliciosas do que o “carajillo” – café fortificado com algum tipo de bebida alcoólica. Tomei uma vez com Bailey’s  e logo fiquei viciada. Em que outro lugar do mundo você pode pedir em voz alta no balcão “un carajillo, por favor!”, com a maior dignidade ?

         6)  Outra bebida muito apreciada pelos espanhóis é a “horchata”, um tipo de refresco feito com o leite extraído de uma planta chamada “chufa”. No Brasil ela é conhecida como “junquinho” (ou “junça”)  e considerada planta daninha, mas na Espanha é cuidadosamente cultivada. Não morro de amores por esta bebida leitosa e adocicada, mas, quando a gente viaja, parece que tudo fica mais atraente. Tomei “horchata” duas vezes na rua e achei ótimo!

Horchatería em Valencia

   7)  Outra coisa que não como de jeito nenhum aqui no Brasil, mas que na Espanha tem um sabor todo especial é “churro”. Não que esta fritura massuda e sem graça tenha um gosto melhor lá na Espanha. O que muda é o jeito de se comer: antes de levá-lo à boca, a gente deve mergulhar o churro numa xícara de chocolate quente. Só então, tentando evitar os respingos de chocolate pela mesa no trajeto entre a xícara e a boca, estaremos prontos para saboreá-lo à moda espanhola. É viagem garantida de volta à infância!


Churros com chocolate: uma viagem à infância
Enquanto comia meus primeiros churros da viagem, achando que já dominava toda a cena madrilenha, dei com os olhos num cartaz que me confundiu um pouco, onde se anunciavam “porras con chocolate”. Uma rápida consulta ao garçon me tranquilizou. Na Espanha, “porra” é um tipo de churro, feito com a mesma massa, porém sem as ranhuras na superfície. 



Churros e porras são vendidos por todos os cantos da Espanha, mas há um local em Madrid que se destaca de todos os outros – a Chocolateria San Ginés, fundada em 1894. No começo do século XX, era ponto de encontro de celebridades literárias, mas hoje os frequentadores são na maioria turistas. Um detalhe que me impressionou: a chocolateria fica aberta 24 horas por dia, sete dias por semana.



Chocolatería San Gines, uma instituição madrilenha
         8) Uma dica valiosa para qualquer turista desavisado na Espanha: “bocadillo” não significa “bocadinho”, mas sanduíche feito com aqueles pães deliciosos, tipo baguete italiana, de farinha boa. Logo no início da viagem, caí na besteira de pedir um “sándwich de jamón”, caprichando na pronúncia, apenas para receber da balconista o sanduíche de presunto mais sem graça deste mundo, feito com pão de forma. Depois dessa experiência frustrante, aprendi:  para comer um bom sanduíche, é preciso pedir “bocadillo de jamón ibérico”. E nem precisa caprichar na pronúncia, que todo o mundo entende.



sexta-feira, 15 de julho de 2016

A voz de Svetlana em Paraty



Quando anunciaram o nome da jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, na Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty, me levantei da cadeira num pulo. Era o momento mais esperado da Flip. Mal podia acreditar que estava a poucos metros da detentora do Prêmio Nobel de Literatura que, nove meses antes, me tinha roubado o sono de muitas noites a fio, por causa do livro Vozes de Tchernóbil.

Será mesmo ela?

Com passos miúdos e vestida com a simplicidade discreta de quem conhece bem o próprio valor e não faz a menor questão de aparentar o que não é, a jornalista e escritora de 63 anos de idade nos sorriu timidamente e logo se encaminhou à cadeira que lhe foi destinada, procurando rapidamente uma posição confortável.



Enquanto a plateia aplaudia entusiasmada, lembrei-me de um detalhe insignificante que li em uma reportagem sobre o Nobel, em outubro do ano passado. A matéria dizia que, quando o telefone tocou para lhe dar a notícia do prêmio de 1,4 milhão de dólares, Svetlana se encontrava em casa, tranquilamente... passando roupa! Esta insignificância nunca me saiu da cabeça. Para mim, a imagem pé-no-chão da ilustre jornalista, passando roupa no seu momento de maior glória, revela mais sobre a personalidade desta mulher incomum do que longos discursos laudatórios.

Assim que vi o nome de Svetlana nos jornais, procurei ler algum dos seus livros.  Foi tarefa complicada. Percebi que o trabalho da jornalista bielorrussa era desconhecido do lado de cá do Atlântico. Os Estados Unidos ainda não haviam prestado muita atenção nela. Traduções ao Português, até onde pude investigar, simplesmente inexistiam. Encontrei finalmente uma versão eletrônica, com boa tradução ao Espanhol, do Vozes de Tchernóbil - um livro emocionante e perturbador, baseado em entrevistas com sobreviventes do acidente catastrófico da usina nuclear de Chernóbil, na Ucrânia, então parte da União Soviética, ocorrido em 1986. 

Escrito com uma humanidade tocante, Vozes de Tchernóbil me pegou pelo estômago. Devorei-o com uma voracidade e encantamento que há muito tempo não sentia ao ler um livro. Fiquei tão emocionada, que acabei escrevendo um texto sobre ele aqui no blog. (Se quiser lê-lo, basta clicar aqui.)

Ao final do livro, uma pergunta não saía da minha cabeça: por que é que o mundo levou tanto tempo para descobrir a obra desta escritora monumental?



Assim que terminei o livro, fui logo em busca de outro. Mais uma vez, senti-me grata por viver na era mágica da internet, que me permitiu ler A Guerra Não Tem Rosto de Mulher sem ter que esperar meses até seu aparecimento nas livrarias daqui do Brasil. É um livro forte, inesquecível, tão impactante quanto o primeiro. Desta vez, porém, o tema é o envolvimento das jovens mulheres soviéticas na Segunda Guerra Mundial, que deixaram para trás tudo o que tinham -  famílias, estudos, segurança, conforto, inocência e juventude - para pegar em armas e lutar no front contra o exército alemão, embriagadas pelo fervor nacionalista do stalinismo. 

Como indica o próprio título do livro, a importância da feminilidade na vida das mulheres traz revelações surpreendentes, tanto na guerra quanto na paz, provocando profundas reflexões sobre a questão do feminino vs masculino. Assim como no livro sobre Tchernóbil, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher é uma sequência de depoimentos comoventes colhidos ao longo de anos, em centenas de entrevistas. Svetlana, entretanto, prefere evitar este termo.  "Não faço entrevistas", fez questão de ressaltar durante a apresentação na Flip. "O que faço são visitas às casas das mulheres, onde tomamos chá e passamos horas conversando, sem pressa nenhuma, sobre temas que nos interessam - falamos sobre uma blusa nova que compramos, uma boa receita de bolo ou a vida com nossos netos. Aos poucos,  vêm à tona lembranças de detalhes das histórias da guerra que, para muitas daquelas mulheres, pareciam estar completamente esquecidos e apagados." 

Os relatos que Svetlana consegue obter nessas longas conversas são de uma força emocional esmagadora.  "A guerra é uma vivência demasiado íntima", acredita Svetlana. "Não me interessam os fatos externos nem as estatísticas da guerra, mas os sentimentos das pessoas, a história omitida." E se define, com firmeza delicada: "Sou historiadora da alma".



Se você está planejando ler algum destes livros, prepare-se para entrar num redemoinho emocional violento. Svetlana não brinca em serviço. Ela mergulha fundo no coração das pessoas, sem dó nem piedade, manejando com habilidade um afiado bisturi jornalístico. Mas apesar das tragédias e da dureza dos temas tratados, a jornalista consegue extrair de cada entrevistado os sentimentos mais belos e nobres existentes no ser humano, como solidariedade, amizade, generosidade, coragem e, acima de tudo, amor  ("essa palavra de luxo", como diz a poeta Adélia Prado).  Mesmo quando descreve as cenas mais cruas e dolorosas, o que Svetlana quer nos transmitir, na verdade, são as falas que vêm do coração. Sem jamais resvalar para o sentimentalismo, ela garante: "A única saída existente hoje no mundo, para a humanidade, é o amor."

Atrás daquele semblante afável, Svetlana não esconde o que pensa sobre a política russa atual. Sem meias palavras, dispara: "Não temos ilusões políticas, sabemos que bandidos estão no poder. Nós, democratas, fomos derrotados. Para reconquistar a liberdade, ainda temos um longo caminho a percorrer. E daí? Muito mais importante do que tudo isso na vida é estar perto das pessoas a quem queremos bem. Por isso resolvi retornar ao meu país." E pergunta, com um sorriso desarmante: "Como poderia viver longe da minha netinha?"