quarta-feira, 28 de julho de 2010

A música do segundo andar


No começo eu me assustava com o volume alto da guitarra que entrava sem avisar pela janela do nosso apartamento no Rio de Janeiro. Só me faltava essa! Parava o que estava fazendo e aguçava o ouvido. Quem seria aquele vizinho folgado, com coragem de ligar o aparelho de som nesse volume, a essas horas da noite? - eu me perguntava, num misto de indignação e curiosidade. Mas logo a melodia esperta e suave que vinha do segundo andar me imobilizava.

Era fácil reconhecer alguns dos compositores brasileiros, sempre da melhor qualidade: Chico Buarque, Edu Lobo, Tom Jobim, Caetano Veloso... O difícil era identificar de onde vinham aqueles acordes diferentes, que brotavam inesperados como num tango argentino. Cada nota extraída daquela guitarra me soava como uma carícia na noite, insidiosa e elegante.

"Esse guitarrista é bom demais, deve ser algum músico profissional", comento, encantada, com meu marido. "E como é que você sabe que é um homem que está tocando essa música -  e não uma mulher?" Pelo tom desafiante da pergunta percebo, mal contendo o riso, que ele está com ciúmes do vizinho invisível. "Eu sei, simplesmente, e pronto. Acho que a gente deveria dar graças a Deus de ter um vizinho assim, que gosta deste tipo de música, tão bonita e sofisticada... Já pensou se fosse um pagodeiro?"

Meu marido é obrigado a concordar: "É... pensando bem..."  E, a despeito dele próprio, também interrompe o que está fazendo para curtir a música celestial que invade a nossa casa. Mas logo abandona o devaneio, inquieto. "Acho que não tem músico nenhum lá em cima, não. Deve ser algum CD que o vizinho está tocando alto...", pondera o maridão, louco para encerrar de vez a minha tietagem.   Bem neste momento, a guitarra interrompe a bela melodia que está tocando para recomeçá-la em seguida. Agora não há dúvidas. Fica óbvio que não estamos ouvindo um CD, mas o trabalho cuidadoso de um músico em busca da interpretação perfeita.

As "canjas" do vizinho do segundo andar agora fazem parte do nosso ambiente doméstico. E nós as saboreamos com gosto, qualquer que seja a hora. Em geral duram pouco, não mais que cinco ou dez minutos. Houve uma vez em que o guitarrista  nos despertou do mais profundo sono no meio da noite, mas sinceramente nem liguei: além da melodia ser divina, o concerto da madrugada foi de curtíssima duração, não teve mais do que alguns poucos acordes. Quando a guitarra enfim se calou, voltei imediatamente, feliz e embalada, aos braços de Morfeu.

Minha curiosidade para identificar o guitarrista do segundo andar foi maior que a atitude blasée que eu vinha tentando manter há meses no meu prédio. Há poucos dias não me contive e perguntei ao porteiro, torcendo para ninguém mais me ouvir: "Aquele vizinho do segundo andar é um músico profissional... não é?" Foi aí que fiquei sabendo: meu vizinho é o grande Victor Biglione, um dos maiores guitarristas e violonistas da atualidade, arranjador de peso que, entre outros prêmios, conquistou o Grammy Latino ao lado de Milton Nascimento. Nasceu em Buenos Aires, mas veio para o Brasil quando tinha apenas seis anos de idade. Apaixonou-se pela música brasileira e já tocou com mais de trezentos nomes da MPB,  mas felizmente nunca permitiu que o tango o deixasse. Que mistura boa ganhamos todos aqui no Brasil!

Gracias por la buena musica, vecino!

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