quinta-feira, 28 de abril de 2011

Mozart e Myanmar


Viagem a Myanmar - parte 5

- É fácil a gente obter um visto de turista para entrar no Brasil?

A primeira vez que ouvi esta pergunta em Myanmar, achei que meu interlocutor queria uma resposta "normal", do tipo "Sim, basta ir ao consulado brasileiro mais próximo, preencher os formulários etc...". Mas quando outras três pessoas me fizeram a mesma pergunta em ocasiões diferentes, achei estranho.  Percebi que havia uma intensidade pouco comum por trás daquela indagação diplomática, que volta e meia pipocava nas nossas conversas.

Aos poucos me dei conta de que o que as pessoas buscavam era muito mais um afago na autoestima nacional do que uma informação burocrática. Parecia-me que a resposta que gostariam de ouvir era algo do tipo: "Sim, existe um país do outro lado do mundo, belo e generoso, que está à espera de sua visita de portas abertas, mesmo que você não tenha nenhum plano de ir até lá."

Para a maioria das pessoas que vivem em Myanmar viajar ao exterior é quase um sonho impossível. Não que as distâncias sejam muito grandes. Para ficar só naquela região, Myanmar faz fronteira direta com cinco países: China, Índia, Bangladesh, Laos e Tailândia. Cingapura, Malásia e Indonésia estão logo ali na esquina. Tampouco lhes falta vontade. O dinheiro deles é curto, claro. Mas muitos teriam condições de viajar ao exterior sem maiores despesas, hospedando-se em casa de amigos e ajudando nas tarefas domésticas.  Mesmo assim, é raro a gente encontrar alguém que já tenha cruzado a fronteira do país alguma vez na vida.

"Eu já estive na China", conta-me sorridente Thet Win Naung, nosso guia da região sudeste de Myanmar. "Que interessante", começo a dizer, já pensando em mil perguntas sobre suas impressões da viagem. Ele me corta na hora, com ar de brincadeira: "Mas foi só por cinco minutos, quando fiquei com os dois pés ali do outro lado da linha da fronteira!" - e explode numa gostosa gargalhada.

O obstáculo maior, que para muitos parece intransponível, é a obtenção do visto de entrada em um país estrangeiro - qualquer país -, pelo simples fato de serem cidadãos de Myanmar,  há mais de quatro décadas sob um governo militar que os mantém isolados do resto do mundo.

Assim, quando Thin Thin,  nossa guia de Mandalay, me disse que já tinha viajado à Europa, minha primeira reação foi de incredulidade. Pensei que estivesse brincando comigo, como o outro guia havia feito. Mas Thin Thin não era mulher para brincadeira. Pelo contrário: sempre direta e rápida, mostrava-nos todas as atrações turísticas locais com correção, mas sem abertura para maiores intimidades. Por isso fiquei surpresa quando ela interrompeu de repente a caminhada que fazíamos em torno de um velho monastério para me contar um pouco dessa viagem marcante, ocorrida em 2004.

Ela havia tirado férias para visitar uma irmã que morava na Áustria e aproveitou para conhecer três cidades européias: Viena, Paris e Trieste. Em Trieste ficou encantada com as esculturas que viu nos museus e nas ruas. Em Paris vibrou com a subida à Torre Eiffel e o passeio de Bateau Mouche no Sena. Mas foi em Viena que o coração dela bateu mais forte:

- Em Viena fui pela primeira vez na minha vida a um concerto de música clássica. Era Mozart.

Nesse momento, Thin Thin fechou os olhos. Estava visivelmente emocionada.  Com delicadeza, procurou mentalmente as palavras certas em inglês para descrever a sensação mágica que foi a de ouvir Mozart pela primeira vez ao vivo, intenso e vibrante, a poucos metros de onde estava. Era como se a orquestra inteira estivesse tocando ali só para ela, disse.

- Eu nunca tinha ouvido aquela música antes, mas entendi tudo.

Foi um momento curioso, esse. Duas mulheres praticamente estranhas uma para a outra, vindas de culturas completamente diversas, conversando num idioma estrangeiro para ambas, nos arredores de Mandalay,  sobre a beleza do poder transformador da música de Mozart.

- A música é que é a verdadeira linguagem internacional. Ela é capaz de nos unir a todos nesse mundo, sem necessidade de tradução - resumiu Thin Thin, no seu inglês fluente, mas com sotaque inevitável.

Yes, indeed, Thin Thin! Tô contigo e não abro!

E dali prosseguimos nosso caminho lado a lado, os pés descalços, pelos belos monumentos históricos de Myanmar, sob a batuta de Mozart.



Nenhum comentário: