terça-feira, 28 de agosto de 2012

Na Itália, uma surpresa: sou pós-moderna!

Mamma mia! Che cosa succede? Por que de repente alguma coisa acontece no meu coração, como o de uma adolescente que acaba de fazer sua primeira viagem internacional? Um giro de apenas dez dias na Itália bastou para me deixar apatetada com a riqueza histórica e artística daquele povo mediterrâneo.

Devo dizer que não foi a primeira vez que fui à Itália. Desta vez, confesso, fui a Roma e não vi o papa. Mas em compensação peregrinei feliz da vida por uma infinidade de capelas, igrejas e museus da região da Toscana, que exibem o que há de mais precioso na história da arte universal. Com um entusiasmo semelhante ao que senti em minha primeira viagem ao Velho Mundo, lá fui eu, de olhos bem abertos, determinada a registrar na  memória cada detalhe das maravilhas medievais e renascentistas que desfilavam diante de mim.

Firenze, Arezzo, Cortona... Dio mio, isso aqui está bom demais!


Quantas obras de arte e riquezas históricas deslumbrantes, para quem vem de um país tão novo como o Brasil... Funiculi, funiculá! La vita è bella!


E a marcha da turista deslumbrada continua acelerada: Siena, San Gimignano... Como sei bella, Italia!


 Quantos vilarejos encantadores, dos quais eu nem sabia da existência: Cavriglia, Gaiole in Chianti, Vertine, Radda...


À noite, o caminho de volta é sempre em baixo astral. Não porque eu esteja cansada, mas simplesmente porque, depois que o sol se põe nestas paragens, já não encontro mais portas abertas em lugar algum e o jeito é conformar-me em ir dormir. Aqui não gosto de perder meu precioso tempo dormindo!


No dia seguinte, recomeça a peregrinação: Montepulciano, Chiusi... ufa! Como são curtos os dias...


O fato é que, depois de alguns dias de turismo acelerado por tantas cidades medievais, entrando e saindo de museus, subindo e descendo ladeiras, ouvindo os sinos nos campaniles das igrejas a marcar as horas inescapavelmente fugidias, minha cabeça já não acompanha mais aquela fome louca de ver tantas belezas ao mesmo tempo. As informações se embaralham em minha mente.

Maledizione! Droga! Qual é mesmo o nome daquele artista importantíssimo que pintou aquele quadro memorável daquela igreja extraordinária daquela cidade medieval que visitei ontem? (Ou terá sido anteontem?)

Bem mais rápido do que esperava, o cansaço turva meu olhar e agora vejo o que não conseguia ver no início da viagem:  infiltrações nas paredes dos museus, afrescos desbotados, jóias arquitetônicas recobertas de bolor, ruelas escuras, moradias insalubres, rostos melancólicos dos comerciantes de souvenirs baratos made in China.


De um dia para o outro, o que eu chamava de antigo de repente parece ter virado, simplesmente, velho. Deixo de lado meu deslumbre de turista acidental e tento colocar-me no lugar da gente da terra: manter viva toda essa herança cultural deve ser um fardo pesado para quem vive aqui. Só de imaginar o trabalho insano que isso deve dar, sinto-me exausta.


Nem é preciso fazer contas: está claro que não há dinheiro que chegue para tantos reparos ou para a simples manutenção contra a ação do tempo. Como será a vida nestes vilarejos quando chegar o frio e desaparecerem os turistas?

Foi com estes pensamentos cansados que percorri as infindáveis salas do Palazzo Pubblico de Siena, todas decoradas com afrescos nas paredes e obras de arte valiosíssimas, muitas se desmilinguindo diante dos nossos olhos por causa da umidade do ar. À medida que avançava pelo palácio adentro, sala após sala, sentia-me cada vez mais insignificante diante de tanta riqueza cultural.

Ao meu lado, visitantes de diferentes nacionalidades sussurravam expressões de admiração quase religiosa em diversos sotaques: Ah!... Oh!... Mon Dieu!... Espléndido!... Wunderbar!...  

Uma tristeza inexplicável toma conta de mim.

De repente, quando entro na Sala del Mappamondo para admirar o monumental afresco Maestá, pintado em 1315 pelo artista sienense Simone Martini, uma visão absolutamente inesperada me faz sorrir: um círculo branco imenso divide a sala ao meio, solenemente indecifrável, surpreendendo os visitantes pela sua própria inutilidade. Tenho vontade de abraçar com toda a minha afeição aquele intruso contemporâneo - simples, perfeito, belo. Meus olhos, àquelas alturas já cansados de reverenciar tantas obras primas do passado, agora brincam... de bambolê! Oba!


É libertador poder admirar a arte contemporânea sem medo de parecer insensível à arte dos grandes mestres do passado.

Descubro mais tarde que o grande círculo é obra do artista Francesco Carone, nascido em Siena em 1975. Como é bom sentir-me trazida de volta para o aqui e o agora, pelas mãos de um artista que vive no meu tempo. Tenho a mesma sensação refrescante que se tem depois de um banho de cachoeira num dia de calor opressivo. Sinto-me resgatada, renovada, reinventada.

Nesta sala descobri, dentro de mim, o significado e o poder transformador da arte pós-moderna. Certa ou errada, fico feliz com a constatação de que a pós-modernidade agora me pertence.


Divino círculo, tua simplicidade perfeita é o que há de mais belo no mundo. Tu me pertences, eu te pertenço. Obrigada por me sacudir e me fazer ver a vida com novos olhos!



terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quem beijou... beijou!

Ué? Você não vai escrever nada no seu blog sobre a Flip deste ano? - me perguntou uma amiga que mora em Nova York. Fiquei meio desconcertada, porque já faz um mês que a Festa Literária Internacional de Paraty sacudiu a charmosa e antiga cidade do litoral do Rio de Janeiro. Como sempre, a Flip, que este ano comemorou sua décima edição com uma bela homenagem a Carlos Drummond de Andrade, realimentou meu espírito leitor e aguçou minha fome de novidades culturais. Depois dos quatro dias de intensa programação de palestras, shows, debates, reencontros com amigos, saborosas experiências gastronômicas e caminhadas pelas ruas de pedras pé de moleque, voltei para casa saltitante, cheia de ideias novas, curiosa e feliz.

O que mais posso acrescentar a tudo o que já foi dito e cantado aos quatro ventos sobre esta festa?

Passado um mês da deliciosa esbórnia cultural, a pergunta de minha amiga agora me faz parar, olhar para trás e refletir sobre o que ficou marcado em mim desta última Flip. Decido não ler minhas anotações e vou direto ao coração vasculhar as lembranças daqueles quatro dias de julho que primeiro vem à minha mente.

1) Lembro-me divertida da viagem de ônibus do Rio de Janeiro para Paraty. Quase todos os passageiros se dirigiam à Flip e o clima era de uma inusitada confraria cultural, em que todos nos entreolhávamos com meios sorrisos, como se já nos conhecêssemos há tempos. Sentou-se ao meu lado um homem de cerca de sessenta anos, que logo puxou assunto e não parou mais de falar durante a viagem. Era a primeira vez que ia à Flip e estava visivelmente ansioso. "Eu sempre tive vontade de ir à Flip, mas nunca tive coragem antes", revelou-me, incompreensivelmente sério. Quando percebeu que eu não entendia o que ele queria dizer, explicou:  é que aquele evento literário era "burguês" demais para alguém tão comprometido com a esquerda como ele, filho de ex-guerrilheira dos tempos da ditadura, exilado político (morou mais de dez anos no Senegal) e militante do PT. "O que  meus companheiros iriam pensar de mim se me vissem na Flip, aplaudindo esses autores de direita?", angustiava-se. Ainda bem que ele não parecia interessado em ouvir minha opinião sobre o tema. Antes que eu pudesse abrir a boca para emitir qualquer opinião, o ex-guerrilheiro disparou a contar sua vida inteirinha durante a viagem, recheada de eventos mirabolantes, dignas de um filme de ação. No final ele resolveu soltar o verbo, talvez encorajado por minha atenção silenciosa, citando nomes, locais e datas da vida underground da década de 70. (Mais tarde, por curiosidade, fui verificar na Internet: eram mesmo informações factuais.) De todos os autores convidados da Flip deste ano, aquele que meu companheiro de viagem mais queria ver era Luís Fernando Veríssimo,  por uma razão bem pouco literária. "É que o Veríssimo apoia o Movimento dos Sem Terra", confidenciou compungido, como quem justifica uma atitude eticamente reprovável.

2) Na manhã do primeiro dia da Flip, a brilhante palestra sobre Carlos Drummond de Andrade dada pelos professores Alcides Villaça (Usp) e Antonio Carlos Secchin (UFRJ) - valeu minha ida a Paraty. O óbvio prazer e respeito mútuo que aqueles dois sentiam em dialogar um com o outro, o tom quase religioso com que recitavam os versos do poeta,  a profundidade de suas análises e a adorável simplicidade da forma com que expressavam suas próprias ideias cativaram meu coração. Eu - ingênua que sou! - imaginava conhecer razoavelmente bem a obra de Drummond só por tê-lo estudado na escola e, de repente, me senti gauche na vida. Ainda tenho muito o que aprender.

3) Como quase sempre acontece, as melhores experiências da Flip são as mais inesperadas. Foi o caso, para mim, da palestra Quadrinhos para Maiores, com os cartunistas Angeli e Laerte.


Para falar a verdade, eu achava que iria assistir a uma sequência de piadas estilo cuca fresca, pontuada por  risadas adolescentes na plateia. Confesso que o que mais me motivava neste evento era ver de perto o Laerte vestido de mulher, nessa forma de expressão curiosamente contraventora que é o crossdressing. Quando o Laerte entrou no palco com aquele esvoaçante vestido longo estampado, lábios carmim, unhas esmaltadas, bijuterias delicadas, trejeitos de tia e voz grossa de homem, pensei: vai começar a comédia. Mas o papo dos dois velhos amigos foi surpreendentemente sério e bom. Eles falaram com lucidez e transparência sobre temas difíceis, como as limitações impostas pelo envelhecimento e os bloqueios de inspiração no processo criativo que os assaltam de vez em quando. Um debate provocador e por vezes emocionante - sempre salpicados de boas risadas, é claro. São surpresas como esta que me fazem voltar à Flip, ano após ano, com entusiasmo renovado.

4) Ao contrário do que aconteceu no ano passado, desta vez São Pedro resolveu colaborar com a Flip. Com aquele céu imaculadamente azul e temperatura amena, quem não conseguiu despregar os olhos dos livros para dar uma voltinha de barco pelas ilhas daquele litoral abençoado... perdeu!


Tanta beleza à nossa volta fez meu amigo Fernando declamar gloriosamente em voz alta, os braços abertos para o céu, do alto do pequeno barco em que navegávamos, a célebre frase do coveiro de Inhaúma: "Quem beijou... beijou! Quem não beijou... não beija mais: agora nós vamos fechar o caixão!"

É isso aí: para quem não foi à Flip, nossos sentimentos. O jeito agora é esperar pela festa do ano que vem.