segunda-feira, 1 de julho de 2019

A bronca do mestre budista


Levar bronca faz parte do crescimento de qualquer ser humano. Já levei várias ao longo da vida e sempre aprendi muito com elas. Mas a bronca imerecida que recebi há poucos dias durante uma cerimônia num templo budista chinês de Toronto me pegou de surpresa e me deixou desconcertada por um bom tempo.

O templo Cham Shan é um vistoso complexo de diversas construções com salas, altares, incenseiros e imensas estátuas para devoção, práticas e estudos budistas. Aberto sete dias por semana ao público, o templo fica a poucas quadras da casa de minha filha em Thornhill, na grande Toronto, onde vim passar algumas semanas.



Assim que cheguei na cidade, fui visitar o templo, curiosa para saber o que acontecia por lá. Apesar de todos os cartazes estarem escritos em caracteres chineses e apenas uma pequena parte deles com tradução em inglês, consegui decifrar que às terças e sextas-feiras havia uma sessão de cânticos zen, seguida de uma meditação andante e outra silenciosa. Não entendi bem o significado de “meditação andante”, mas isso não me preocupava. O problema era a duração daquela sessão: duas horas! Será que eu aguentaria permanecer tanto tempo assim numa prática para a qual eu não tinha sido preparada, num grupo de pessoas que eu não conhecia e que se comunicavam numa língua que eu não falava?



Peggy, uma simpática voluntária chinesa do templo que me viu parada diante de um enorme cartaz, se aproximou de mim e resolveu me ajudar. Por algum motivo inexplicável, ficamos logo muito à vontade uma com a outra. Mesmo com certa dificuldade de se expressar em inglês, Peggy conseguiu me transmitir informações valiosas sobre como me comportar adequadamenjte nas atividades do templo. Recorrendo de vez em quando à linguagem corporal, conversamos bastante e também nos divertimos uma com a outra neste esforço universal de comunicação  com a ajuda das mãos. Graças ao incentivo da minha nova amiga, dois dias depois lá estava eu de volta ao templo, toda pronta e confiante para participar das duas horas de cânticos e meditação zen.


Minha autoconfiança murchou rapidamente quando cheguei ao local da sessão em cima da hora e não vi a Peggy no grupo de uns quarenta chineses que já haviam começado a entoar os cânticos em mandarim.  Estavam todos vestidos com uma simples túnica marrom, perfilados ao redor de uma majestosa imagem dourada do Buda no centro da sala. À frente do grupo, o mestre budista comandava as atividades com uma autoridade visivelmente marcada pela cor da roupa: suas vestes eram as únicas ali que, além da cor marrom, tinham também umas pregas em amarelo-dourado vibrante.

E agora, o que faço para entrar nesse grupo? - pensei, acreditando que o cântico não duraria mais que alguns poucos minutos e logo começaria a prática da meditação. Uma senhora muito gentil apareceu para me conduzir ao local onde eu deveria ficar de pé, junto aos outros participantes e, sem dizer palavra, me entregou um maço de folhas xerocadas, cobertas de alto a baixo com caracteres chineses. Notei que, além de mim,  apenas uma outra moça não vestia o traje marrom. Menos mal, pensei, pois pelo menos tinha companhia. Compreendi também que nós duas éramos as únicas pessoas não-iniciadas naquele grupo, sendo que eu claramente era a última dos últimos, uma vez que não entendia nada de mandarim e ela, sim.



Percebendo que eu estava perdida, a gentil senhora indicou para mim o trecho que o grupo estava cantando no meio daquelas centenas de caracteres chineses. Olhei com mais atenção para o local apontado por ela e descobri com certo alívio uma representação fonética das palavras chinesas em alfabeto latino: huang, pin, li, shen... Tentei então com toda a minha determinação e boa vontade imitar aqueles sons e acompanhar de alguma forma o canto do grupo, até então bem cadenciado. De repente, as vozes começaram a cantar cada vez mais rápido, atingindo um ritmo acelerado de rodopio doido. Foi aí que me perdi por completo. Desisti de cantar.

Sempre com aquele inútil papel na mão, baixei os braços e fechei os olhos. Respeitosamente, tomei a decisão de começar ali mesmo minha meditação, rendendo-me por completo à beleza da melodia mântrica à minha volta. Mergulhada no meu mundo interior, fui bruscamente trazida de volta à realidade daquela sala pela voz impaciente do Mestre, bem ali ao meu lado. Eu não podia de maneira alguma baixar os braços durante o cântico, repreendeu-me ele. Aquilo era errado. Se eu quisesse permanecer ali, tinha que manter o papel diante dos meus olhos o tempo todo. Caso contrário, eu deveria sair do grupo e me sentar em alguma das cadeiras que estavam ali junto à parede.

Poucas broncas que levei em minha vida foram tão inesperadas e injustas. Eu estava lá dando o melhor de mim - ou pelo menos assim achava. Além do mais, tinha sido amavelmente convidada por uma voluntária do templo a participar daquela sessão. Sentar numa daquelas cadeiras seria humilhação suprema. Não olhei para os lados, mas tinha certeza de que quarenta pares de olhos estavam fixados em mim naquele momento.

Como o Mestre me ofereceu a opção de permanecer ali com os olhos abertos e o papel corretamente na mão, mesmo sem conseguir cantar nada, tomei a decisão de ficar onde estava. O canto continuou normalmente e - surpreendida comigo mesma - eu me senti muito feliz e tranquila com minha decisão de ficar no grupo. A melhor parte da sessão ainda estava por vir! Que bom que não fui embora antes da meditação andante começar. Caminhar em fila indiana, com toda a atenção voltada ao momento presente, foi uma experiência muito nova e prazerosa para mim. E o cântico desta parte da prática - felicidade suprema! - tinha só sete sílabas que se repetiam incansavelmente: Namo Ami Ado Huang... Facinho, facinho!

Nem senti o tempo passar. Fui embora poucos minutos antes do final, discretamente e sem falar com ninguém, seguindo rigorosamente as dicas de comportamento zen que minha amiga Peggy me havia dado poucos dias antes. Com as mãos postas em posição de humildade, me dirigi à saída em marcha à ré (para não dar as costas ao Buda) e fiz uma simples reverência ao Grande Mestre.

Voltei para casa leve e feliz comigo mesma. Qualquer dia vou lá no templo de novo.










sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um anjo chamado Maurício



Tem gente que não acredita em anjos. Pois eu, sim. Há poucos dias um deles passou voando pela minha vida. Ele se chama Maurício e me fez ver que, apesar de todas as evidências em contrário, ainda existe muita gente de bom caráter nesse país.

Eu tinha acabado de chegar em casa depois de um dia longo. Antes de jantar, resolvi arrumar um pouco as minhas coisas. De repente senti o chão fugir dos meus pés: a carteira de dinheiro que estava dentro da bolsa, com todos os meus documentos, havia sumido!

Não adiantou revirar a bolsa pelo avesso, muito menos rezar para São Longuinho, prometendo dar três pulinhos. A carteira tinha sumido mesmo. Eu tinha certeza de ter estado com ela na mão poucos minutos antes, para retirar o dinheiro e pagar a corrida do táxi que me levou até perto de casa. Devo ter deixado a carteira cair no chão do carro, pensei.

Mas como entrar em contato com o motorista daquele táxi, entre os mais de 300 mil taxistas da cidade que estão circulando por aí?

Alarmada, fiz rapidamente uma lista mental de todos os documentos que trazia na bolsa: carteira de identidade, de motorista, de plano de saúde, do clube, do metrô, cartões de banco... Ai, não! Quantos dias de trabalho teria que gastar e quantas filas teria que encarar, só para refazer aquilo tudo?

Mentalmente esgotada, fiquei paralisada por mais de uma hora, sem saber a quem recorrer. De repente, do outro lado da casa, toca o celular do meu marido e ouço a voz dele ao telefone, todo animado, conversando com um amigo:

- Oi, tudo bem com você? O quê? Encontraram a bolsa da Monica? Com quem? 

O amigo não sabia explicar por quê, mas um tal de Maurício lhe havia telefonado para dizer que estava com todos os meus documentos em mãos.

Na mesma hora liguei para o número do celular que ele havia passado, sem entender direito o que estava acontecendo. A voz do Maurício me soou como a de um habitante de outras esferas planetárias:

-    Encontrei sua carteira no chão do posto de gasolina quando fui abastecer meu carro e fiquei um tempão ali, tentando um meio de localizar a senhora para poder lhe entregar tudo direitinho. Liguei para o seu consultório de dentista, clube, academia de ginástica, mas não consegui falar com ninguém - até encontrar um papelzinho com o telefone daquele amigo do seu marido. Como já estava ficando tarde, resolvi deixar um recado e ir para casa. Todos os seus documentos e todo o seu dinheiro estão bem guardados aqui comigo.

Como eu não conseguia articular nenhuma palavra com sentido, desconfio que Maurício sentiu pena da minha aflição, pois ele continuou: 

-    Olha, estou dirigindo a caminho de casa, já quase entrando no túnel Rebouças, mas posso fazer um retorno para encontrá-la naquele mesmo posto de gasolina daqui a pouquinho.

-    Sim, sim!!! - consegui dizer, já um pouco refeita da surpresa. - Estou indo para lá agora! Mas como é que eu vou saber quem você é?

-    Vou estar dentro do meu carro, um Corsa preto, estacionado bem na saída do posto.

Sem pensar nos riscos de um encontro à noite com um completo estranho num posto de gasolina, saí voando.  Quando avistei o carro preto no local combinado, confesso que de repente senti uma certa insegurança. Afinal, quem seria este Maurício? O que ele me pediria em troca de um favor tão grande?

Mas, no momento em que o vi saindo do carro, com aquele seu sorriso franco e tranquilo, meus medos desapareceram. Abracei-o como se fôssemos amigos desde sempre.

-    Pode conferir. Está tudo aí dentro - documentos, dinheiro, todas as moedinhas. A senhora me desculpe, mas tive que abrir a carteira para tentar descobrir alguma forma de identificar o dono e conseguir devolvê-la. Quando vi a foto daquela menininha linda no meio dos seus documentos…   aquilo mexeu comigo. Não ia sossegar enquanto não localizasse a senhora, pois senti que a mesma coisa poderia acontecer comigo ou com a minha esposa!

O sorriso de minha neta Aninha, naquela foto 3x4 que sempre trago comigo, nunca me pareceu tão mágico!

-    Maurício, você tem filhos? - perguntei, juntando todas as notas que havia na minha carteira.

-    Tenho duas filhas - e logo começou a falar delas todo orgulhoso, ressaltando o bom desempenho escolar das suas meninas.

-    Então compre um presente para elas com este dinheiro…

Nem consegui terminar a frase, pois Maurício me interrompeu bruscamente:

-    De jeito nenhum! Não fiz mais do que minha obrigação.

E acrescentou, com a tranquilidade segura dos justos:

-    Deus já me deu tudo de importante que eu tenho na vida: duas filhas maravilhosas, uma esposa incrível, um emprego de que eu gosto muito. Não preciso de mais nada.

E com isso se despediu gentilmente de mim, desejando ainda que Deus me acompanhasse de volta para casa.

Poucos dias depois, voltei a me encontrar com o Maurício na portaria da TV Globo, onde trabalha como cameraman. Desta vez ele aceitou meu presente singelo: uma torta de chocolate para ele levar para casa e curtir com a família. Que a vida lhes seja doce!

Anjos existem por toda a parte, mas nem sempre a gente os vê. 

Maurício e eu, na porta da TV Globo









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