A Mafalda tem me acompanhado diariamente. Todas as manhãs, quando viro a folhinha do calendário que me dei de presente na última viagem que fiz a Buenos Aires, leio uma tira criada pelo cartunista argentino Quino. Pois é, meus dias tem começado assim: com uma cutucada no espírito e um sorriso no coração.
Conheço poucas fontes de reflexão tão relevantes e prazerosas quanto as tiras da Mafalda - essa menina politicamente engajada e contestadora, cujo sonho é viver num mundo melhor. Mafalda foi criada nos anos 60, quando a Argentina vivia uma época de grande instabilidade política e conflitos sociais. As tiras logo alcançaram enorme sucesso, sendo traduzidas para dezenas de idiomas. Durante dez anos Mafalda cresceu, apareceu, sonhou, brigou, refletiu e esbravejou o mais que pôde. Mas nem a Argentina nem o resto do mundo davam indícios de que iriam mudar de alguma forma. Até que chegou uma hora em que seu criador decidiu jogar a toalha. Em 1973, Quino decretou o final das tiras da Mafalda e disse que jamais a desenharia outra vez. Para a tristeza de todos nós, atentos seguidores da turma da Mafalda, o cartunista tem cumprido o prometido.
O nome verdadeiro de Quino é Joaquin Salvador Lavado. Filho de pais espanhóis, nasceu em 1932 na cidade de Mendoza, terra dos bons vinhos argentinos. Surpreendentemente, ao contrário da Mafalda, Quino confessa que gosta de tomar sopa. Aos 77 anos, continua o mesmo homem tímido que sempre foi, um tanto descrente da humanidade, com aquele ar de pessimismo atávico que parece fazer parte do caráter dos argentinos. "Repare que de Adão e Eva saiu um filho assassino", disse ele numa entrevista. "Ou seja, das quatro pessoas que havia no começo do mundo, um quarto era delinquente. Parece que não mudamos nada de lá para cá." Piadinha sem graça. Mas Quino observa que, quando vai à Espanha, ele se sente "mais festivo", talvez por causa de suas raízes.
Para fazer cada tira da Mafalda, Quino diz que costumava passar um dia inteiro trabalhando, das 9 da manhã às 5 da tarde. Era um tal de desenhar e apagar com a borracha que não acabava mais. O sofrimento era constante, porque ele nunca sabia se iria conseguir inspiração para a tira do dia seguinte.
O fato é que, mesmo depois de 37 anos sem novas tiras, Mafalda continua muito viva e atual. Em agosto do ano passado, foi inaugurada uma escultura adorável da Mafalda sentada num banco de praça, em frente a um prédio onde Quino viveu, no bairro de San Telmo em Buenos Aires.
Gente do mundo inteiro, como eu, reencontra na Mafalda aquele fio de esperança na humanindade que se acreditava perdida. Amanhã cedo, quando virar mais uma folhinha naquele calendário que tenho ao lado do computador, novamente vou sorrir e sonhar com um mundo um pouco melhor para todos nós.