segunda-feira, 31 de maio de 2010

Mafalda em bom Português

Acabo de ler no jornal uma notícia boa: esta semana vai ser lançado no Brasil o livro "10 anos com Mafalda", da editora Martins Fontes. Já era mais do que tempo, pois vejo que a primeira edição argentina é de 1991. Para quem ainda não tem sua Mafalda na mesa de cabeceira, aqui vai a sugestão: é hora de colocar a mão no bolso e investir rapidinho na compra de um exemplar. É satisfação garantida, prometo.

A Mafalda tem me acompanhado diariamente. Todas as manhãs, quando viro a folhinha do calendário que me dei de presente na última viagem que fiz a Buenos Aires, leio uma tira criada pelo cartunista argentino Quino. Pois é, meus dias tem começado assim: com uma cutucada no espírito e um sorriso no coração.

Conheço poucas  fontes de reflexão tão relevantes e prazerosas quanto as tiras da Mafalda - essa menina politicamente engajada e contestadora, cujo sonho é viver num mundo melhor. Mafalda foi criada nos anos 60, quando a Argentina vivia uma época de grande instabilidade política e conflitos sociais. As tiras logo alcançaram enorme sucesso, sendo traduzidas para dezenas de idiomas. Durante dez anos Mafalda cresceu, apareceu, sonhou, brigou, refletiu e esbravejou o mais que pôde. Mas nem a Argentina nem o resto do mundo davam indícios de que iriam mudar de alguma forma. Até que chegou uma hora em que seu criador decidiu jogar a toalha. Em 1973, Quino decretou o final das tiras da Mafalda e disse que jamais a desenharia outra vez. Para a tristeza de todos nós, atentos seguidores da turma da Mafalda, o cartunista tem cumprido o prometido.

O nome verdadeiro de Quino é Joaquin Salvador Lavado. Filho de pais espanhóis, nasceu em 1932 na cidade de Mendoza, terra dos bons vinhos argentinos. Surpreendentemente, ao contrário da Mafalda, Quino confessa que gosta de tomar sopa.  Aos 77 anos, continua o mesmo homem tímido que sempre foi, um tanto descrente da humanidade, com aquele ar de pessimismo atávico que parece fazer parte do caráter dos argentinos. "Repare que de Adão e Eva saiu um filho assassino", disse ele numa entrevista. "Ou seja, das quatro pessoas que havia no começo do mundo, um quarto era delinquente. Parece que não mudamos nada de lá para cá."  Piadinha sem graça. Mas Quino observa que, quando vai à Espanha, ele se sente "mais festivo", talvez por causa de suas raízes.

Para fazer cada tira da Mafalda, Quino diz que costumava passar um dia inteiro trabalhando, das 9 da manhã às 5 da tarde. Era um tal de desenhar e apagar com a borracha que não acabava mais. O sofrimento era constante, porque ele nunca sabia se iria conseguir inspiração para a tira do dia seguinte.

O fato é que, mesmo depois de 37 anos sem novas tiras, Mafalda continua muito viva e atual. Em agosto do ano passado, foi inaugurada uma escultura adorável da Mafalda sentada num banco de praça, em frente a um prédio onde Quino viveu, no bairro de San Telmo em Buenos Aires.

Gente do mundo inteiro, como eu, reencontra na Mafalda aquele fio de esperança na humanindade que se acreditava perdida. Amanhã cedo, quando virar mais uma folhinha naquele calendário que tenho ao lado do  computador, novamente vou sorrir e sonhar com um mundo um pouco melhor para todos nós.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vamos brincar?

Domingo fiz um programa divertido, sem sair de casa nem gastar um tostão: brinquei no quintal com um grupo de amigos. Quando digo "brinquei", é no sentido mais simples e literal da palavra. O que nós fizemos foi o que qualquer grupo de crianças costuma fazer com naturalidade quando se encontra ao ar livre, num dia de sol. A gente correu, pulou, gritou e cantou em voz alta, rindo às gargalhadas, até perder o fôlego. Nem me lembro mais quando foi a última vez que fiz isso - talvez aos 10 ou 12 anos de idade, no recreio do colégio. Na brincadeira de domingo passado, éramos seis adultos bem maduros e vividos, dois dos quais inclusive já são avós.

A brincadeira aconteceu sem ninguém esperar, quando uma amiga de repente começou a dar pulos de alegria, celebrando aquela manhã de sol... e simplesmente não parou mais. No começo,  tenho que confessar que aquela demonstração espontânea de entusiasmo me pareceu meio esquisita para um grupo de seis adultos normais. Mas o contágio da alegria foi mais rápido que fogo no palheiro e, em questão de segundos, todos os seis abandonamos nossas posturas respeitáveis e viramos crianças novamente.

Foram só cinco minutos de brincadeiras e risadas destrambelhadas... mas como nos divertimos!

Cansados mas felizes, voltamos aos poucos à normalidade e passamos a nos dedicar a atividades menos aeróbicas. Quando a manhã enfim terminou e o grupo se preparava para ir embora, no lugar das despedidas convencionais eu me vi dizendo aos amigos: "Adorei brincar com vocês hoje!"

Acho mesmo que, na próxima vez que eu quiser combinar algum programa com eles, vou acabar perguntando:  "E aí, vamos brincar?"

quinta-feira, 20 de maio de 2010

João jangadeiro

Ele se chama João e tem 71 anos de idade. Todos os dias do ano trabalha sob o sol escaldante do litoral pernambucano, transportando em sua jangada turistas que vem de todos os lados para ver os peixes multicoloridos nas piscinas naturais da praia de Porto de Galinhas, ao sul de Recife.

Enquanto eu me deixava transportar na jangada do sr João, deslumbrada com tanta beleza natural à minha volta, de vez em quando o espiava pelo rabo do olho. Quantas vezes terá aquele homem percorrido esse trajeto na maré baixa, levando turistas que, como eu, não param de fotografar o cenário paradisíaco entre a praia e os arrecifes de sua terra natal?

Sr João conduz a jangada com firmeza, sem dizer palavra nem esboçar sorriso. Não parece cansado, mas também não esbanja energia. Apenas faz seu trabalho, calado e hábil, como em todos os dias do ano, no meio de dezenas de outras velas coloridas.

Quando desço da jangada para continuar a pé o percurso até as piscinas naturais, observo que a água morna do mar cobre meus tornozelos, o que significa que a maré já recomeça a subir. Olho com atenção a vela da nossa jangada para me certificar de que, na volta do passeio, vou conseguir identificar qual delas é a nossa. A vela é de cor amarela, alegre como o sol, com um característica que me é especialmente agradável: ao contrário das outras velas que estão ali no mar, a do sr João não traz nada escrito, nenhuma logomarca, nenhuma propaganda. Nada. É só um imenso pano amarelo.

"A sua jangada é a mais bonita de todas", faço questão de dizer ao sr João, na mais completa sinceridade. Pela primeira vez no passeio, vejo um sorriso no rosto do velho jangadeiro, que me explica: "É a Julia". Só então enxergo o nome pintado com capricho em letras vermelhas, na parte lateral da jangada.

"Quem é Julia?", arrisco a pergunta. Foi como acionar o botão de um rádio, até então desligado. O sr João não parou mais de falar, agora com um brilho nos olhos: "É a minha bisneta, que eu e minha mulher estamos criando. É o meu xodó, a alegria da minha vida. Quando volto para casa depois do trabalho, até esqueço meu cansaço quando a Julia vem me abraçar."

Fico sabendo que Julia tem 14 anos, mas "não é igual à gente, assim que nem nós". Custo um pouco para entender o que o sr João quer dizer com essa frase, mas ele logo começa a descrever a bisneta, sem conseguir disfarçar o grande orgulho que sente por ela: "A Julia nasceu com um problema no ouvido e muita gente dizia que ela não iria aprender a fazer nada na vida. Ninguém queria cuidar dela, então minha mulher e eu pegamos a menina para criar e fizemos tudo por ela.  Nós a levamos ao médico e conseguimos um aparelhinho para ela usar na orelha. Aí então ela aprendeu a falar uma porção de coisas e hoje até me chama direitinho de pai! E é só eu que ela chama assim, mais ninguém..."

Nesse momento percebo que a voz de sr João fica um pouco emocionada, mas em seguida ele continua a falar com entusiasmo da bisneta: "Agora a Julia - a senhora precisava ver! - já é até capaz de escrever o nome dela sozinha!"  Sr João conta que o "aparelhinho" do ouvido ficou pequeno para a adolescente, mas que ele já providenciou outro maior, através dos serviços de atendimento médico do governo. "O novo aparelhinho já deve estar chegando, aí vai ficar tudo beleza".


No paraíso tropical de Porto de Galinhas, descobri que há outras belezas além dos peixes, algumas invisíveis à grande parte dos turistas e bem mais difíceis da gente fotografar.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Dançando na serra

Passei o fim de semana dançando, na serra de Itaipava. Deixa eu me explicar melhor: onde se lê "dançando" leia-se "celebrando a vida". Foram três dias de muita atividade física coreografada, mas também de muitas risadas, conversas, partilhas, boa comida, banhos de cachoeira...  Voltei da serra cheia de energia, pronta para enfrentar a semana rodopiando internamente com uma alegria quase infantil.

Tudo isso aconteceu num workshop de Nia - uma técnica de dança desenvolvida há cerca de trinta anos na Califórnia, que logo se espalhou pelos Estados Unidos. Em Itaipava, éramos um grupo de doze mulheres - duas americanas e oito brasileiras - das quais eu não conhecia ninguém no primeiro encontro na quinta-feira à noite, num bonito clube campestre da região. 

"Nia" significa oficialmente Neuromuscular Integrative Action - um nome pomposo que explica pouco. Prefiro a versão irreverente que alguém deu à definição desta dança divertida, que mexe ao mesmo tempo com o corpo, a cabeça e as emoções da gente: No Inhibitions Allowed ("Nenhuma Inibição Permitida").  Acho que a definição pirata revela melhor o espírito desta dança, que me cativou completamente desde a primeira vez que a pratiquei em Nova York, em 2001, pouco tempo depois de ter me mudado para lá, ainda praticamente sem amigos e sem entender direito onde me encaixar naquela ilha.

O  "mandamento" número um desta técnica diz tudo: Joy of movement. Encontrar alegria nos movimentos do corpo é condição essencial  para a prática do Nia. A gente tem que "ouvir" o que o nosso corpo nos diz, antes de tentar transmitir qualquer coisa com ele. A expressão dos nossos movimentos é consequência desta sintonia do corpo com o coração e a cabeça - coisa que (imagino eu) aquelas bruxas maravilhosas da Idade Média deviam conhecer bem. Pois eu rapidamente me encontrei nesta dança. De repente, Nova York passou a fazer sentido para mim e acabei viciada na alegria.

Desde que voltei a morar no Brasil, há dois anos e meio, nunca mais pratiquei Nia, nem sequer ouvi falar nesse nome. Apesar de ter nascido e sido criada aqui, o Brasil tem sido para mim um país estranhamente fascinante, que ainda tento decifrar no dia a dia. Trato de me adaptar ao meu "novo" país como outras vezes o fiz em terras estrangeiras. Ou seja, se aqui não tem aulas de Nia, tudo bem: vou procurar minha turma, praticar outros esportes, remar na lagoa, caminhar na praia e ser feliz de outras formas. Por isso, foi com enorme surpresa que, no mês passado, bati com os olhos num pequeno anúncio afixado no quadro de avisos de uma academia de yoga em Itaipava: estavam abertas as inscrições para um workshop de Nia, liderado por uma instrutora americana de North Carolina, que estaria viajando para cá especialmente para dar este curso. Quase não acreditei! Fui a primeira a fazer a inscrição.

Dançar Nia novamente foi como "voltar para casa". Conhecer aquelas pessoas através da dança foi como reencontrar amigas de infância.

Mas o que mais me emocionou neste fim de semana foi um momento completamente inesperado. Foi quando estávamos todas reunidas em um círculo e a professora nos pediu que disséssemos, uma de cada vez, alguma coisa - qualquer coisa! - que nos trouxesse alegria na vida. Era uma brincadeira simples, um convite ao sorriso. "Amigos!", disse a primeira. "Comida!", disse a segunda. "Dança!", lembrou outra.

Quase no final do círculo, ouvi alguém dizer baixinho, com grande delicadeza: "Brasil". Levei um susto. Recebi aquilo como um grande soco no meu coração, que me desmontou completamente.  "O Brasil me faz sentir alegria", repetiu a voz delicada daquela brasileira, que vive há muitos anos no exterior. Senti meus olhos se encherem de lágrimas. 

Naquele momento deixei que o Brasil me abraçasse e senti uma imensa gratidão por estar de volta ao meu país.


terça-feira, 11 de maio de 2010

Olha o jegue! (Saudades das férias com minha filha)

Passou rápido demais. Uma semana mal dá para matar as saudades da minha filha, que vive no frio e distante Canadá e só consigo ver de seis em seis meses - quando muito. Mas como foi bom caminhar com ela pelas praias quase desertas do litoral pernambucano, dar risadas a troco de nada, jogar conversa fora mergulhados até o pescoço na água morna do mar nordestino, só com a cabeça de fora, sem pressa nem vontade de sair mais dali...

Cada momento é saboreado devagar. O ritmo de vida do povo  nos ajuda muito: para que tanta pressa na vida? Tento registrar cada paisagem, cada risada. A qualquer pessoa que passe pela minha frente peço que tire uma foto nossa, por favor rapidinho, é só apertar esse botão aqui, nem precisa caprichar demais. Se o fotógrafo é alguém da terra, a gente já sabe que, na hora de bater a foto, ele vai nos pedir um sorriso com o delicioso sotaque pernambucano:

Olha o jegue!

(Clic! Mais um momento feliz registrado na maquininha digital.)

Olho para minha filha e não consigo deixar de pensar, com espanto e admiração: é uma mulher feita. Cadê aquela menininha tinhosa, malcriada e divertida, que eu acreditava que jamais sairia da minha vida cotidiana? Em lugar dela, o que vejo é (que me perdoem a corujice, mas não estou nem ligando para a correção política nesses assuntos!) uma jovem mulher, linda, saudável, corajosa, inteligente e dona de um adorável senso de humor.

Minha filha e eu sempre fomos diferentes fisicamente. Para ser sincera, isso me incomoda um pouco, pois gostaria que nossa relação mãe-filha parecesse óbvia para qualquer desavisado que nos visse juntas pelas ruas. Mas não é. Desconhecidos sempre nos perguntam o que somos uma da outra - uma chatice imposta pela genética.

Busco então a visão reconfortante dos pés e mãos da minha filha, onde reconheço, feliz da vida, a herança dos traços dos meus antepassados. Imperfeitos e pouco fotogênicos, diga-se de passagem, mas indiscutivelmente nossos. Ufa, aos menos isso...

A semana de férias se foi, minha filha também. Mas ficaram recordações gostosas, coloridas e engraçadas, registradas nas fotos que revejo diariamente já com saudades, ouvindo o convite ao sorriso do pernambucano: Olha o jegue!