segunda-feira, 6 de abril de 2015

Encontros em Jericoacoara (3) - Gente que brilha

É difícil fotografar a beleza de um lugar que a gente visita. Quase sempre as imagens mais belas – aquelas que permanecem na nossa lembrança muitos anos depois - ficam escondidas atrás de sua gente, dos pequenos gestos, da conversinha miúda.
Jericoacoara é desses lugares que deixam a gente meio desorientada numa primeira viagem, sem saber em que concentrar nosso olhar de turista, sempre ávido por novidades:  se na beleza das praias ou na das pessoas em quem esbarramos a cada momento.

Ricardo é um desses habitantes de Jeri que fazem a gente refletir sobre as nossas próprias escolhas de vida. Nascido e criado na cidade de São Paulo, um belo dia se cansou da selva de pedra e resolveu se mudar de mala e cuia para recomeçar a vida no litoral nordestino.  As velhas receitas da avó libanesa inspiram hoje o
cardápio do seu simpático restaurante árabe Káfila,  bem no centro de Jeri, onde a comida é simples, mas satisfaz. Gostoso, mesmo, é conversar com ele sobre a vida que leva ao lado da esposa Susana e do filho do casal, Gabriel, de cinco anos.  Sem pressa e sem pontos de exclamação, ele fala com a serenidade de quem não tem dúvidas sobre a decisão de se mudar para lá.  “Meu filho brinca na rua, todo o mundo conhece ele por aqui, vai a uma escolinha maravilhosa perto da nossa casa e ainda pode ir a praia todos os dias... Em São Paulo eu jamais teria condições financeiras de proporcionar uma vida tão rica quanto essa para ele.”

Além de trabalhar no restaurante, Ricardo também é instrutor de kitesurf – a modalidade de esporte mais popular da região, que atrai gente do mundo inteiro, por causa dos ventos que não param de soprar sobre o belo mar de água morna, especialmente no segundo semestre. Sua maior preocupação como instrutor deste esporte radical é a segurança. O curso básico leva três dias, cada um com três horas de muita teoria e alguma prática, num total de nove horas de instrução. O mais importante, segundo Ricardo, é o aluno não ter pressa para entrar no mar e realizar manobras radicais. Com calma e responsabilidade, cada um aprende a respeitar os proprios limites e a se divertir no mar, qualquer que seja a sua idade. Seu aluno mais idoso tem mais de oitenta anos e o mais jovem, apenas sete. Muito em breve ele irá ganhar um aluno ainda mais novo: seu filho Gabriel, que deve começar as aulas este ano.

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Todos os dias antes do sol nascer, as ajudantes de cozinha Val e Maria saem da pequena cidade litorânea de Preá para chegar à pousada de Jeri onde trabalham. O trajeto de van leva cerca de uma hora. Quando o primeiro hóspede da pousada aparece no restaurante para tomar o café da manhã, elas já assaram três tipos diferentes de bolo, prepararam diversos sucos de frutas,  arrumaram as mesinhas e guarneceram o buffet de quitutes nordestinos.  Quando algum hóspede chega, elas se apressam a lhe trazer o cardápio com as opções do dia, sorridentes e discretas, sempre falando o mínimo necessário. Poucos hóspedes lhes prestam atenção. Eu também me distraio e, para falar a verdade, quase não reparo nelas – são tantas as atrações que nos esperam na mesa e na praia!
Num dia de sol, resolvo sair para almoçar num dos vários restaurantes de Jeri, bem distante da minha pousada. Quando termino de comer, de uma hora para a outra o céu fica negro e uma tempestade assustadora me pega completamente desprevenida.
São raios e trovões para todos os lados. O aguaceiro torrencial me força a buscar refúgio sob um pedaço ridiculamente pequeno de telhado, meus pés já afundados na água barrenta que corre pela rua de terra. Fico imóvel, prisioneira daquele arremedo de telhado. É inútil tentar sair dali.
De repente, do outro lado da rua, vejo dois pares de olhos que me observam atentamente. São Val e Maria, que já estão comodamente abrigadas da chuva, dentro da van que dali a poucos minutos irá levá-las de volta a Preá. As duas cochicham algumas palavras entre si e em seguida uma delas – Maria – de repente salta da van e corre em minha direção para me entregar seu proprio guarda-chuva, com um enorme sorriso no rosto. Reparo que ela ficou com a roupa e o cabelo encharcados. Constrangida, tento lhe dizer que não posso aceitar aquela generosidade que me parece excessiva, mas ela insiste: “Não se preocupe, pode deixar o guarda-chuva na pousada que eu o pego lá amanhã!” E volta correndo para a van debaixo do temporal, para iniciar sua viagem de volta para casa - só que hoje ela irá com a roupa molhada.


Enquanto caminho de volta à pousada, sob a proteção daquele guarda-chuva providencial,  sinto um misto de gratidão e, principalmente, admiração. O poema famoso de Mayakovsky me vem à cabeça:

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é para brilhar...

No dia seguinte, quando fui tomar meu café da manhã, Maria e Val já estavam lá à minha espera, sorridentes como sempre. Depois do clic da foto, um trecho da música Gente do Caetano me faz cantarolar mentalmente e me acompanha pelo resto do dia:

Gente espelho da vida, doce mistério...

4 comentários:

Roberto Gadelha Pinheiro disse...

Maravilhoso texto, lê-lo é nos dar uma gostosa massagem de otimismo na vida e nas pessoas que nos cercam.

Unknown disse...

Um texto tão tocante tinha que vir dessa amiga querida que sempre tem um olhar especial para os pequenos (ou grandes?) detalhes em relação à vida e às pessoas. Adorei, como sempre! Bj

Anônimo disse...

Que leitura gostosa. Me senti viajando com você!

Unknown disse...

Monica querida, que texto lindo...
Que delícia conhecer Jeri através dos seus olhos e do doce de suas palavras.
Me encantei com Jeri, com a Val e com a Maria... =)

Beijos no coração
Luciana Rossan