sábado, 8 de março de 2014

Cheiro de manga


Meu pai iria completar 93 anos no dia 28 de fevereiro. Eu já tinha começado a planejar uma festinha em casa para celebrar a data em família, do jeito que ele tanto gostava, com simplicidade e alegria. Só que, lá em cima, os planos eram outros. Em vez da celebração festiva, em fevereiro nossa família viveu dias de despedida e tristeza. E meu pai se foi desta vida quando tinha que ir, ao fim de uma trajetória longa e plena, com muitos de seus sonhos realizados.

Menino de vida simples, nascido em Belém do Pará, papai perdeu a mãe muito cedo, mas teve uma infância feliz, cercada do carinho do pai, dos cinco irmãos e da tia que ajudou a criá-los como se fosse a própria mãe. Aos 17 anos, deixou a família para estudar no Rio de Janeiro, então capital da república, onde cursou a universidade e formou-se médico. Certo dia, quando trabalhava no recém inaugurado Hospital dos Servidores do Estado, viu sair do elevador uma jovem secretária que fez seu coração bater mais forte. Naquele momento, disse a si mesmo: "É com esta moça que vou me casar". Imaginada ou verdadeira, esta historia foi-nos muitas vezes contada com orgulho pela mamãe. O fato é que os dois logo se apaixonaram, namoraram e se casaram. Em seguida, vieram as duas filhas e tiveram uma vida tranquila e feliz. Mais tarde, as filhas se casaram, tiveram seus próprios filhos e ganharam o mundo, pontuando a vida familiar com muitas viagens, despedidas e reencontros. Faltavam apenas alguns meses para eles completarem cinquenta anos de casados, quando mamãe se foi inesperadamente das nossas vidas, contrariando todas as previsões de papai, que sempre havia imaginado que seria ele o primeiro a nos deixar. Sobreviveu mais quinze anos, sozinho no apartamento de Ipanema em que morou por mais de meio século.

Mitologia e internet

Meu pai era um homem de hábitos simples. Gostava de almoçar fora e passear pela orla da praia, mas, no fundo, o que ele preferia mesmo era ficar na tranquilidade de casa. Passava horas entretido com a leitura de historias mirabolantes da mitologia grega, sua grande paixão literária. Com quase oitenta anos de idade, aprendeu a navegar habilmente pela Internet e todos os dias se comunicava comigo e minha irmã via e-mail, onde quer que estivéssemos.

Em 2007 mudei-me de volta ao Rio de Janeiro depois de anos fora do Brasil. Pude, então, conviver mais de perto com meu pai e acompanhá-lo no seu cotidiano. Sinto-me grata à vida por ter-me dado esta oportunidade de estar mais tempo com ele nos últimos seis anos. Houve inúmeros momentos de grande ternura, alegres, emocionantes. Infelizmente, com o passar do tempo, vieram também momentos de dor, cansaço e tristeza, pois não é fácil a gente assistir ao processo de degradação física e mental de um ente querido, contra o qual pouco se pode fazer.

Encarar a morte é um processo dolorido, mas nos traz uma reflexão valiosa: é nessas horas que nos damos conta do quão fugidia é a vida. Cada momento que vivemos é único e, por isso mesmo, merece ser saboreado com o prazer intenso que só uma fruta perfeitamente madura nos dá.

Memória afetiva

Assim é que, com carinho todo especial, revejo a última foto que tirei do meu pai na cozinha de casa, enquanto eu tirava da sacola as frutas que lhe tinha trazido do mercado, num pequeno ritual que repetíamos a cada semana.

- Que fruta é essa, pai? - perguntei, mostrando-lhe uma maçã bem vermelha e apetitosa.
- Não sei - respondeu depois de algum tempo, quase na defensiva por não conseguir se lembrar do nome daquela fruta tão comum.
- Sente o cheiro dela, papai: olha só que delícia...
Percebo que ele faz um grande esforço para vasculhar os porões da memória e encontrar o nome daquela bela fruta, mas não dá.
- Não sei - repete, já meio irritado.
Apesar da irritação, vejo que está com o olhar bem atento. Parece fascinado pelas cores e formas variadas das frutas que estão ali à sua frente. Sinto que, apesar do cansaço mental, nosso pequeno jogo da memória o diverte.
- E esta fruta aqui, qual é?
Desta vez, mostro-lhe um lindo caqui, brilhante e macio. Depois de alguns segundos de silêncio, arrisca o palpite:
- Tomate?...
Acho graça na semelhança que ele encontra entre as duas frutas.
- Você quase acertou, papai! Este caqui parece mesmo um tomate!
Papai sorri, satisfeito com a brincadeira.
Escolho agora uma linda manga madura e aproximo-a do seu nariz.
- E esta fruta, papai, será que você sabe qual é? Sente só o cheiro dela...
Desta vez, ele nem piscou. A resposta veio rápida, sem tempo para pensar:
- Manga!

Havia uma vivacidade diferente na sua voz. Em seus olhos, de repente pude ver o brilho do olhar do menino que um dia ele foi. Pude imaginá-lo de pés descalços, encarapitado nos galhos de uma grande mangueira, com o rosto todo lambuzado de manga madura.

Ah, o cheiro da manga! Em que porões da memória afetiva do meu pai estaria guardado o cheiro daquela fruta? Que lembranças de infância lhe traria aquela delícia tropical, sempre presente nas ruas e mesas de Belém do Pará?

Uma coisa é certa: entre as muitas boas lembranças do meu pai,  guardarei sempre vivo no meu coração o cheiro gostoso da manga madura.



18 comentários:

Ana Cristina Nadruz disse...

Eu também gostaria que meu filho se recordasse de mim através do cheiro de uma fruta que ambos gostássemos! Que belo texto, amiga! Comovente.

EyeWall disse...

Monica querida: Um abraco carinhoso para voce. Agente sente muita falta dos pais quando se vao, mas nada e' mais forte como as lembrancas que ficam deles. A sua mais recente e' tao bonita que imagino so' quao lindas as passadas devem ser.

Com carinho,
Marina

disse...

monica, lendo seu texto fiquei emocionada com o cheiro da manga. Este ano minha mangueira deu uma manga de 2,5kg. Coloquei uma foto dela no face junto de um melao. Hoje abri a manga, esta uma delicia com um cheiro maravilhoso. Entendo seu pai. Na infancia em Nova Lima subindo em arvores ainda e uma lembranca viva. Parabens pelo texto.

Betty disse...

Monica...,me lembrei de minha mãe que igual a seu pai, amava manga. Ainda me lembro, como se fosse ontem, chupando manga, aquela bem fibrosa até o caroço, se deliciando.
Lindo texto. Me emocionei muito, por ter conhecido, mesmo que pouco teu pai e nunca me esqueço de nosso almoço, logo após nosso reencontro. Beijo grande Betty

Unknown disse...

Linda matéria, Monica... lembro tanto de meu pai, que se foi há apenas três anos e meio...
E eles foram tão amigos...
Beijos,

captpera disse...

Também tive a felicidade de como vc ter um uma pessoa tão importante em minha vida que foi meu pai... meu melhor amigo, do peito, de fé, camarada!
Assim é a vida cara Mônica, dela não se leva a nada... somente os bons momentos!
Dai então bate forte a saudade...cheiro de manga...Algo de alguém que nos leva, algo de alguém que nos fica!

anamar disse...

Mónica,
como sempre, mete beleza em tudo.

Até na morte... , pois a partida de um pai com a idade do seu é para poemar e não para chorar.

Um beijo amigo e bom domingo.

Ana

julianakoeler disse...

Que lindo, Monica! Deve ter sido lindo o encontro dele com a sua mãe! Nossos entes queridos qdo se vão nunca nos deixam sós , pois ficam as lembranças gostosas que vez ou outra enchem nosso rosto com aquele sorriso gostoso! Bjks pra vc

Claudio Roso disse...

Lindo texto, Monica. Perda de pai é uma coisa que mexe com a gente. Quase três anos após a perda do meu ainda penso nele todos os dias. Mas o vazio, o sentimento de perda e a tristeza dos primeiros tempos deram lugar hoje a boas recordações, que me confortam, me ensinam e alegram o coração. Bjs

Unknown disse...

Monica querida, além de sempre ser um prazer ler os seus textos, este me tocou profundamente, pois como já falei eu também tinha uma relação muito especial com meu pai. Tenho certeza que Papai Cotrim está lá em cima velando por voces e muito feliz por ter tido uma filha tão dedicada! Bjs e carinho, Maria Lucia

bebel disse...

Lindo texto, Mônica. Acho que todos que o leram ficaram emocionados lembrando-se dos seus pais que já se foram e deixaram lembranças tão gostosas. Felizes de nós que guardamos deles essas recordações!!!
Bjs
Bebel

Mariucha disse...

Mônica,
É bom conseguir transformar em delicadezas as dificuldades que passamos.
Curiosamente, (quem sabe depois de sua visita) surgiram os primeiros frutos de uma mangueira que plantamos em Búzios a partir de um saboroso caroço.
Continuemos a saborear o que a natureza nos reserva.
Um beijo,
Mariucha

Roberto Gadelha Pinheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Roberto disse...

Minha querida Monica:
Além do cheiro de manga, havia muitas músicas na memória do querido sogro. Irei guardar para sempre com emoção vê-lo algumas vezes "acordar" ao ouvir algo que o levasse para o passado e começar a cantar, afinado e sem perder uma só palavra, alguma marchinha de Carnaval ou samba do Noel dos anos 30/40.
bjs
Roberto

Leila disse...

Querida Mônica, eu e João soubemos por amigo comum,há poucos dias, da passagem do seu pai. Tenha sempre com você o nosso imenso carinho.
Que linda a simplicidade e ternura que seu belo e emocionado texto nos transmite. Me emocionei muito.
Grande beijo carinhoso, Leila e João

climene disse...

Murilo pesquisou e me informou sobre osignificado do meu nome . Sou muito grata a ele .

Lúcia disse...

Monica, tocante o olhar do seu pai para a lente atrás da qual, imagino, estava o seu olhar. Tocante. Eu já perdi meu pai, muito mais jovem que o seu. É uma perda que coloca a gente bem no meio da eternidade... Seu texto também fala disso, e muito bem, sutilmente. Um beijo e saudades.

Teruko disse...

Que coração lindo o seu, querida Monica!!!
Emocionou-me seu texto, tão envolvente... compreendo seus sentimentos porque sempre lembraremos com carinho de nossos amados pais. Vejo pelas poucas palavras o quanto foi dedicada ao seu Papai.Penso que lhe foi presente inesquecível existir como filha.
Seja você, MUITO feliz!!!SEMPRE!!!

Doçura, na época, lembrando do meu próprio Pai, me foi difícil de lhe responder, apesar dele ter falecido há muitos anos. Enorme abraço carinhoso!!!
Teruko