sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Nova York, dez anos depois do 11 de setembro (1)

Faz quase dez anos que a cidade de Nova York virou palco de uma guerra não declarada, que abalou o mundo. No dia 11 de setembro de 2001, como grande parte dos moradores de Manhattan, amanheci encantada com a beleza do céu daquele fim de verão. Enquanto caminhava com  passo acelerado pelo Upper East Side, rumo à minha academia de ginástica na rua 85, de vez em quando olhava para o alto, admirando o contraste das tonalidades douradas dos edifícios com o azul do céu. Era uma terça-feira como outra qualquer - só que extraordinariamente bela e com o frescor de meia estação, que não dura mais que o pressentimento de mudança.

Hoje, quase uma década depois da tragédia em que quase 3 mil pessoas morreram, resolvi criar coragem para remexer  nas gavetas da minha memória e registrar aqui algumas das emoções que tomaram conta de mim naqueles dias de setembro. Apesar de não ter sido atingida pessoalmente pelos ataques e, nem de longe, querer comparar minhas angústias pessoais com o sofrimento brutal de milhares de outras pessoas que perderam a vida ou entes queridos, de alguma forma também participei do sofrimento coletivo daquela ilha.

Foi uma época particularmente difícil para mim, pois me havia mudado para Nova York apenas seis meses antes. Ainda não tinha tido tempo, portanto, de fazer muitos amigos e me sentia fora do ninho, à procura do meu espaço. Nunca imaginei que algum dia viveria em lugar tão marcado por tanta violência e destruição. Posso dizer que, durante os sete anos seguintes, enquanto vivi em Manhattan, não houve um dia sequer sem que a lembrança daquela terça-feira não sobrevoasse a minha cabeça, como uma nuvem ameaçadora.

Deixo que algumas lembranças me visitem, com a leveza que só a distância no tempo me é capaz de dar:

1) A primeira lembrança que me vem é a do imenso silêncio que se abateu sobre a cidade, absolutamente surreal. De repente, tudo parou: os carros, as linhas de metrô, os ônibus, os aviões. Da janela do meu apartamento, no vigésimo-segundo andar, vi ao longo da Segunda Avenida uma fila interminável de homens e mulheres caminhando no mesmo ritmo, em silêncio e em ordem, todos na mesma direção - para o lado oposto do sul da ilha, onde os ataques haviam ocorrido. Muitos deles estavam com as roupas inteiramente recobertas de pó branco e pareciam robotizados. Escolas, lojas, restaurantes, teatros, bibliotecas, museus -  todos fecharam as portas.  Os serviços de Internet foram interrompidos. Até mesmo os telefones pararam de tocar, com as linhas em pane. Só consegui me comunicar com o Brasil dois dias depois dos ataques, para avisar que estava bem. No meio de tanto silêncio, apenas duas exceções sonoras: a voz dos locutores de plantão em todas as telas de TV - sempre compungida e solene, quase monocórdia - e as sirenes das ambulâncias e do Corpo de Bombeiros - infrequentes, dilacerantes.

2) Todos os túneis e pontes que ligam Manhattan ao continente foram rápida e sumariamente interditados. Ninguém podia mais entrar nem sair da ilha. Além disso, não havia data prevista para a reconexão. Todos estávamos, portanto, literalmente ilhados. Lembro-me de ter ouvido uma notícia que conseguiu me deixar ainda mais nervosa: naquele primeiro dia, a venda de botes infláveis foi tão alta, que os estoques se esgotaram em poucos minutos. Meu Deus, será que ouvi direito a notícia? Botes infláveis, for God's sake! Este fato só confirmou minha desconfiança de que menos informação quase sempre é melhor que informação demais.

3) Passados os primeiros momentos de horror, a muitos de nós, indefesos moradores da Grande Maçã, sobreveio o medo - na verdade, quase a certeza - de que outro ataque terrorista à cidade estaria prestes a ocorrer. Para nós, naqueles dias tudo era possível: contaminação química da água, bomba nuclear, guerra biológica com bacilos de anthrax, ataques suicidas de homens-bomba... Logo percebi que só tínhamos dois caminhos a seguir: simplesmente entrar em pânico ou, então, esquecer o medo e cuidar da vida. Optei pela segunda alternativa. Preparei uma listinha de itens essenciais para um kit-sobrevivência, no mesmo padrão da que eu preparava todos os anos quando vivia na Flórida, no início da temporada de furacões: algumas garrafas de água potável, pacotes de biscoitos, pilhas, velas, fósforos, enlatados. Dentro do supermercado em frente ao meu prédio, encontrei muitos vizinhos que tiveram a mesma ideia que eu. Mas, ao contrário do que normalmente acontecia quando cruzávamos um com o outro na rua e fingíamos que não nos tínhamos visto, naqueles primeiros dias depois dos ataques todos buscávamos um sorriso amigo, uma palavra de cortesia, uma troca de informações sobre as últimas notícias veiculadas pela TV. Na fila do caixa, todos agíamos como velhos conhecidos, conversando amavelmente uns com os outros. Foi muito curioso observar esta mudança de atitude entre os novaiorquinos logo após os ataques. Pouco tempo depois, entretanto, voltamos todos ao "normal".

4) Nos dias que se seguiram ao ataque, era quase impossível concentrar minha atenção no que quer que fosse. Não podia sair de casa, nem conversar com ninguém. Para manter um pouco de sanidade mental nos primeiros dias, tive uma ideia produtiva. Desliguei a televisão e resolvi me lançar num projeto antigo, para o qual nunca encontrava o tempo necessário: a digitalização das fotografias de meus dois filhos quando crianças. Arquivadas naqueles álbuns de plástico que todos nós achávamos o máximo da modernidade nos anos 70-80, as fotos já estavam perdendo a cor. Graças a essa atividade simples que me manteve muitas horas ocupada, consegui criar momentos de tranquilidade no meio do caos, ao mesmo tempo em que recuperava as fotos de um tempo despreocupado e feliz, no meu Brasil tão distante.

5) "Alguém viu minha filhinha?" "Por favor, me ajude a encontrar meu marido!" "Eles estavam no Financial Center no dia 11 - quem souber alguma notícia deles, favor ligar para este telefone." Dia após dia, as mensagens afixadas nos postes de toda a cidade se multiplicavam aos milhares, quase sempre acompanhadas por fotos de pessoas sorridentes, a maioria jovens, cheias de vida. Impossível passar por elas sem um momento de reflexão ou uma pequena oração silenciosa.

6) No primeiro domingo após a tragédia, todas as igrejas de Manhattan ficaram abarrotadas de fiéis, entre crentes e descrentes. Jamais vou esquecer a imagem dos seis bombeiros que naquele domingo levaram o pão e o vinho até o altar da igreja de Santo Inácio, na Park Avenue. No meio do cortejo, aqueles homens fortes e vigorosos de repente se despiram da pose de super-herois e se deixaram cair num choro convulsivo, como crianças desamparadas. Não houve quem não chorasse ali junto com eles.

7) Na mesma semana do ataque às torres, acordei sobressaltada às 2 horas da manhã, com um solavanco que fez tremer toda a cama, provocando um barulho seco, que parecia vir das entranhas da terra. Pensei apavorada: "Explodiram uma bomba dentro do metrô! Eu bem que sabia que isso ia acontecer, eu sabia!" Fiquei um bom tempo ali deitada, imóvel, sem coragem de me levantar da cama, à espera de sirenes e gritos - que felizmente nunca vieram -, até ser vencida pelo sono. No dia seguinte, li no noticiário local: precisamente às 2 da madrugada, registrou-se em Manhattan um abalo sísmico de um grau de magnitude na escala Richter. OK, o tremor foi mesmo pequeno, mas  o epicentro foi logo ali, dentro do Central Park, a poucas quadras do meu edifício. Precisava uma coisa dessas? Nenhum morador de Manhattan merecia um susto extra naquela semana!

8) Demorei mais de três meses para ter coragem de voltar a andar de metrô na cidade. Além do medo de  encarar uma bomba no subterrâneo, outra coisa que me incomodava muito eram os excessos do aparato policial, com seus gritos e apitos. O policiamento embaixo da terra era tão ostensivo que deixava qualquer passageiro intimidado e receoso de levar voz de prisão, sem qualquer motivo aparente. Para não ter de enfrentar grosserias desse tipo no meu cotidiano, passei a utilizar apenas ônibus e táxis. Um pensamento ridículo me consolava e divertia ao mesmo tempo: se eu tivesse que ser vítima de um ataque a bomba, que não fosse embaixo da terra. Por cima dela, eu pelo menos teria condições de identificar direitinho o local em que iria morrer!

Quase um mês depois do atentado, recebemos um telefonema de nossos dois filhos, já adultos, avisando que estariam vindo passar o próximo fim de semana conosco.  Naquela época os dois estudavam em Boston, cidade a quatro horas de viagem de trem de Nova York. Fiquei sem saber o que lhes dizer no telefone. Parte de mim queria muito estar com eles, poder abraçá-los depois de tantos dias emocionalmente difíceis para todos nós. Mas outra parte sentia medo de sabê-los viajando pelas estradas de ferro da  região, alvo fácil para atentados terroristas e que, por isso mesmo, eram meticulosamente monitoradas pela polícia naqueles dias.

Ainda bem que nossos filhos crescem e, sem que a gente se dê conta disso, um belo dia sentem-se perfeitamente capazes de tomar suas próprias decisões sem nos consultar.

Quando mais precisávamos de seu abraço apertado, aqueles dois jovens adultos apareceram à nossa porta, sorridentes, bonitos, saudáveis. Foi um fim de semana feliz, no aconchego seguro do nosso apartamento em Manhattan.



6 comentários:

Anônimo disse...

Monica, lendo o "Nova York, dez anos depois" penso que senti o que passou com você então. Fiquei emocionada!
Engraçado como agora se repetiu uma situação de terremoto seguido de ameaça de furacão. Eu quase morri de preocupação com os filhos e netos que estão na beira do Hudson. Graças a Deus dessa vez não foi nada...

Ana Cristina Nadruz disse...

Amiga querida! Lembro que, passado o susto paralisante do evento, a primeira pessoa que pensei foi em você, que , lembrava, tinha acabado de se mudar pra lá. Agora lendo sua crônica, esse nosso 'tempo' que é pura 'presentidade', colou o 'hoje ' no 'ontem'e tudo ficou tão perto outra vez. Bin Laden morreu. Obama é presidente. Os EUA e a Europa vivem uma crise econômica e de identidade.Você está 'de volta pro aconchego'.E La Nave Va...
beijos!

Risoleta Medrado disse...

Monica querida, imagino os dias difíceis estando lá. Que bom q NY é uma Fenix e sempre se reinventando,renascendo. Adorei seu testemunho.
Bjs

Inês disse...

Muito emocionante o seu relato.
Como 10anos passam tão rápido na nossa vida. Lembro perfeitamente o dia que vi as torres ruindo.Não entendia nada. Parecia um filme, até que entendi a cruel realidade.
Bjs

Anônimo disse...

Tenho até hj guardada um artigo seu logo depois dos ataques, como sempre muito emocionante. Prima querida, como é bom ler o q vc escreve, dá mais sentido a minha vida. Um beijo. Lia

anamar disse...

Li atentamente, querida amiga.

Achei piada ai termo "ilhada".

Até logo.

Bj