domingo, 5 de setembro de 2010

Mais saudades da minha Nova York (2)

Por mais de três meses depois da tragédia de 11 de setembro de 2001, fiquei sem coragem de descer ao subsolo de Nova York e pegar o metrô, como eu sempre tinha feito até então. A agressividade do esquema de policiamento ostensivo e os olhares ansiosos dos pedestres à minha volta me intimidavam de tal forma que eu preferia enfrentar a lentidão exasperante do serviço de ônibus a me enfiar naquelas galerias subterrâneas e escuras.  "Se eu for vítima de uma bomba terrorista, que seja num lugar aberto e bem iluminado: quero enxergar direitinho o lugar onde vou morrer", costumava brincar com meus amigos.

Os turistas desapareceram da noite para o dia. Assim que as pontes e túneis foram reabertos ao tráfego, quem morava fora da ilha, mais do que depressa, deu no pé. Aqueles que já tinham comprado passagens e feito reservas de hotel cancelaram a viagem. Em Manhattan só sobramos nós, pobres moradores sem uma segunda casa onde pudéssemos nos refugiar por uns tempos, até a poeira do medo baixar.

Os teatros estavam às moscas. Artistas da Broadway fizeram uma espécie de passeata nas ruas da região do Times Square, convidando a todos para que fôssemos ao teatro pela metade do preço - please! Operários da indústria do turismo, aqueles homens e mulheres precisavam urgentemente de seu ganha-pão, enquanto que nós, moradores da ilha atacada, necessitávamos alimentar o espírito com alguns momentos de alegria.

Foram dias surreais, aqueles. Dentro do meu armário eu mantinha um kit de sobrevivência em caso de hecatombe: pequena reserva de água potável, biscoitos, lanterna, caixa de fósforos, cadernetinha de telefone, passaporte. Se aquilo fazia sentido, não sei. Mas pelo menos me dava a sensação de ter feito alguma coisa útil.

Para manter o equilíbrio emocional, busquei refúgio no relacionamento com amigos e vizinhos. Aproveitei longas horas de solidão para arrumar gavetas e organizar as fotos antigas de família. Consegui fazer uma coisa que vinha planejando há anos, mas para a qual nunca encontrava tempo suficiente: digitalizei no computador boa parte das fotos dos meus filhos pequenos, que já estavam perdendo a cor original. Foi uma atividade que me trouxe muitos momentos de paz e satisfação interior.

No domingo seguinte ao ataque, tive dificuldade para entrar na igreja de St Ignatius na Park Avenue, tão lotada estava. Mais difícil ainda foi conter as lágrimas, quando um pequeno grupo de bombeiros da nossa vizinhança, uniformizados e solenes, atravessaram toda a igreja carregando o pão e o vinho da comunhão até o altar, chorando convulsivamente como crianças.

Minha busca pela paz interior teve formas variadas: certa vez fiquei uma hora inteirinha sentada em silêncio num templo budista quase vazio; ouvi música clássica à exaustão; perambulei horas a fio pelo Central Park. Mas nenhuma dessas experiências se comparou à sensação de bem estar espiritual que tomou conta de mim quando estive de manhã cedo no Metropolitan Museum of Art.

Naqueles dias sem turistas e muito poucos visitantes, o Museu decidiu excepcionalmente abrir suas portas aos associados uma hora antes do início da visitação. Na Galeria de Arte Medieval foi montado um pequeno palco com algumas cadeiras em volta, onde funcionários e amigos do Museu podiam tocar algum instrumento, contribuindo para a harmonia do ambiente. Sem dizer palavra, de vez em quando aparecia alguém para tocar um solo de violino, uma peça de cello ou uma flauta. Pessoas iam e vinham suavemente e em silêncio, como numa dança sem coreografia, mas orquestrada à perfeição.

Terminada a hora musical, percorria com calma outras galerias de arte, muitas delas de culturas já desaparecidas no tempo. Poder estar ali, sem ninguém à minha volta, na proximidade quase íntima daquelas obras de arte concebidas e criadas por pessoas que um dia nasceram, depois cresceram e por fim morreram em terras que nunca pisei, falando idiomas que nunca ouvi... de repente, tudo aquilo me acalmou por dentro. Pude, finalmente, entender a pequenez dos meus medos e aceitá-los como são: pequenos.

Foi numa dessas manhãs no museu quase vazio que decidi: era ali que eu iria trabalhar. Tinha encontrado o meu refúgio dentro de Nova York.

2 comentários:

Angela disse...

Monica, este é uma pérola! As emoções fortes expostas como na época foi quase impossível compreender. Sinto a poeira na bôca, ouço o silêncio de passos no Museu. Boa viagem, minha irmã!

Monipin disse...

Obrigada, Angela. Já faz quase dez anos. É incrível como a distância do tempo não apaga certas emoções. Acho que nunca consegui transmitir direito o que nós, moradores de Manhattan, sentimos por muitos meses após o ataque ao World Trade Center. Mexer nessas lembranças está me fazendo bem, agora que se aproxima a hora de rever a "minha" ilha.