Viagem a Myanmar - parte 6
- Assim que eu chegar a Mandalay quero assistir a um teatro de marionetes, daqueles bem tradicionais! - exclamei animada, achando-me muito esperta com a programação cultural que havia preparado para os próximos dias da viagem pelo interior de Myanmar.
- Se eu fosse você, não ficaria tão entusiasmada - disse minha amiga birmanesa, jogando água fria nos meus planos de viagem. - Na verdade, esses teatrinhos de marionetes são feitos para agradar turistas estrangeiros e não tem tanta graça assim. Muito mais empolgante é o show de comédia política dos Moustache Brothers. Este, sim, você tem que ver de qualquer maneira quando estiver em Mandalay!
Minha amiga prosseguiu:
- Mas tenha muito cuidado na hora de contratar um táxi para ir a este show, porque nem todos os motoristas tem coragem de parar na porta da casa deles, com medo de serem perseguidos pelo governo e perderem a licença para trabalhar. Peça ao motorista para descer do carro a uma quadra dali. É mais prudente e seguro para todos.
Nem preciso dizer que, com uma introdução dessas, eu já estava mais do que convencida: a primeira coisa que faria quando chegasse a Mandalay seria assistir ao show dos Moustache Brothers. Os marionetes poderiam esperar.
E foi assim que, toda empolgada e com espírito combativo em prol da liberdade de expressão, saí à procura de um taxista destemido pelas ruas de Mandalay. Ao contrário do que esperava, foi bem fácil encontrar um motorista discreto e disposto a me levar até a porta do teatro, sem necessidade de negociações.
O que me deixou preocupada foi o tamanho absurdamente diminuto do táxi, que mais parecia um daqueles carrinhos bate-bate de parque de diversões. Era provavelmente um prenúncio de que aquela noite seria divertida, mas sem as proporções épicas que eu havia imaginado.
Na entrada da casa, cadeiras de plástico empilhadas umas sobre as outras aguardam a chegada dos turistas, cujo número é sempre imprevisível, pois o grupo não faz reservas nem tem permissão do governo para cobrar ingressos. Antes do início do show, somos convidados a fazer uma pequena doação em dinheiro, com o que todos concordamos de boa vontade. Sabemos que esta é a única fonte de renda daquela família de treze artistas, que foi proibida pelo governo de Myanmar de trabalhar no que fazia há três gerações: o a-nyeint pwe, uma forma tradicional de teatro saltimbanco, em que os comediantes cantam, dançam e fazem rir, viajando pelas pequenas cidades e povoados do interior.
A gota dágua que fez os Moustache Brothers entrarem para a lista negra do governo foi um show que fizeram em 1996 na residência da líder oposicionista e Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, onde não faltaram piadas sobre a ditadura militar.
"Venham para Myanmar, mas por favor não roubem ninguém aqui", dizia uma dessas piadas. "´É que o governo não gosta de competição." O governo, obviamente, não achou a menor graça e despachou para a prisão o líder do grupo, Par Par Lay, condenado a sete anos de trabalhos forçados. Mais tarde, outro membro do grupo, Lu Zaw, também foi preso. Os protestos da comunidade internacional logo começaram a surgir, mas foi somente em 2002 que os comediantes foram liberados.
Durante todo esse tempo, coube ao único dos três integrantes do grupo que não havia sido preso, Lu Maw, a dura tarefa de reinventar o trabalho dos Moustache Brothers para garantir o sustento da família. E o show, apesar de todas as dificuldades, continuou com a participação das esposas e outros familiares, com sketches de dança, improviso, comédia e sátira política, podendo ser visto apenas por turistas estrangeiros. Na garagem dos Moustache Brothers, cidadãos de Myanmar não entram, sob pena de perderem seus empregos ou serem enviados à prisão.
Confesso que, em termos de conteúdo, esperava um pouco mais deste show. Falta sutileza no humor, sobram bordões previsíveis. Os personagens são caricatos e seus sorrisos, forçados. Mas, também, pudera: há pelo menos quinze anos, aquele grupo de saltimbancos repete todas as noites os mesmos trejeitos e piadas, em troca de aplausos incertos, doações magras e um pouco de esperança de que sua luta pela liberdade seja fortalecida pela cumplicidade do mundo lá fora.
Com todo seu cansaço e bigodes tristes, o grupo nos toca profundamente o coração. Não por causa do show em si, mas pelo fato extraordinário desses poucos homens e mulheres representarem a única voz com coragem de se opor à opressão da ditadura militar daquele país, a despeito de todos os riscos e do sofrimento por que já passaram.
Um comentário:
Querida Monica : você e muito corajosa !Não e todo mundo que se mete num beco de Miamar. mas nesses becos da vida e que a gente as vezes encontra coisas especiais como teatros , bermudas , blusinhas do Botafogo e tópicas da hora para os meninos. Um beijo Climene
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