Viagem a Myanmar - parte 8
Aqui vão mais três "esquisitices" da cultura de Myanmar que me impressionaram bastante nesta viagem:
4) Câmbio de dólar? Só se as notas forem novinhas em folha!
Cometi a imprudência de não comprar kyats (pronuncia-se "tchats") antes de chegar a Myanmar. Quase estrago minha viagem por causa da falta de dinheiro local no bolso. Mesmo tendo lido todas as dicas de viajantes que me caíam às mãos antes da viagem, dois detalhes de importância vital me passaram completamente despercebidos. Primeiro: em Myanmar não existem caixas eletrônicos (nenhum mesmo). Segundo: lá não existem cartões de crédito ou débito (idem).
Felizmente eu tinha levado comigo alguns dólares para caso de emergência ou imprevisto. Assim que desembarquei do avião em Yangon e me dei conta da minha situação de quase total mendicância em moeda local, fui direto a uma casa de câmbio, acreditando que sairia de lá em questão de minutos com o problema resolvido. Ledo engano. Cada nota de dólar que eu apresentava no balcão era submetida ao escrutínio desconfiado de dois ou três funcionários da casa. Para meu desespero, ao final do exame de cada cédula, quase sempre vinha o veredicto absurdo: "Não podemos trocar esta nota porque ela não está limpa". "Como assim, não está limpa?" E os funcionários apontavam para a marca da dobra no meio da cédula ou um sinal qualquer que indicasse que já havia circulado no mercado. Era difícil acreditar, mas eles só aceitariam meus dólares se as cédulas estivessem com aspecto de novas em folha. Logo percebi que qualquer tentativa de diálogo seria vã. Em Myanmar o câmbio era feito dessa forma há décadas e um funcionário quis saber se eu não havia sido informada disso antes de viajar. Tive vontade de responder: "Não, meu senhor. E, mesmo se alguém tivesse me alertado sobre isso, eu jamais acreditaria." Mas achei prudente não comentar nada. Diante da toda-poderosa burocracia local, comecei a contar tristemente os kyats que me couberam em troca das poucas cédulas de dólar "limpas" que havia trazido na bolsa. Ainda bem que os hotéis e os passeios já estavam pagos. Com o parco dinheirinho de que dispunha, uma coisa era certa: nas duas semanas seguintes teria que limitar meus gastos ao absolutamente essencial. Mas tudo bem. Eu estava tão feliz com esta viagem sonhada há tantos anos, que nada - nem mesmo a falta de dinheiro - poderia atrapalhar meu entusiasmo.
5) Três viradas de ano novo em um só
Os birmaneses celebram três passagens de ano novo diferentes. O primeiro réveillon segue o calendário gregoriano utilizado por quase todo o mundo ocidental (inclusive nós, aqui no Brasil), com base na data do nascimento de Jesus Cristo. Mas é o segundo réveillon que agita todo o país, em meados de abril: é o Thingyan, Festival das Águas. Durante dez dias seguidos, as pessoas vão às ruas para jogar água umas nas outras, numa grande farra nacional. Esta festa celebra a virada do calendário "lunisolar" de Myanmar, uma complicada visão astronômica, que leva em conta simultaneamente as fases da lua e o movimento dos planetas em torno do sol. Por este calendário, no último dia 18 de abril Myanmar entrou no ano de 1373. A terceira virada de ano novo é a do calendário budista, que acontece no período correspondente ao nosso mês de maio. Neste calendário, a contagem dos anos tem início no ano da morte de Buda (543 a.C.). Os birmaneses acabam de celebrar, portanto, a chegada do ano budista de 2555. Assim sendo, as folhinhas em Myanmar registram a passagem do tempo em três diferentes contagens de anos: 1373, 2011 e 2555. Simples, não?
6) Mãos inglesa e americana na mesma via ao mesmo tempo
Nos tempos coloniais, a mão das ruas e estradas seguia o sistema inglês - ou seja, os veículos tinham a direção no lado direito e trafegavam no lado esquerdo da pista. Recentemente, entretanto, o governo de Myanmar resolveu mudar o sistema da mão inglesa para a mão americana, para distanciar-se ainda mais do modelo colonizador. Como esta mudança ocorreu por decreto e passou a vigorar da noite para o dia, não houve tempo hábil para alterar a frota de veículos do país e adaptá-los ao novo sistema. Resultado: carros, ônibus e caminhões com a direção do lado direito (como os veículos ingleses) continuaram a trafegar pelas ruas e estradas (agora com mão americana) como se aquela mudança repentina fosse a coisa mais natural do mundo. Só que havia uma dificuldade adicional para os motoristas: fazer ultrapassagens sem qualquer visibilidade da pista no sentido contrário. Tornou-se, então, essencial a presença do co-piloto para orientar o motorista na hora da ultrapassagem, para se evitarem colisões frontais: "Não, agora não... espera só um pouquinho...", grita o co-piloto para o motorista, com metade do corpo para fora da janela. "Vai... peraí... agora dá! Vai rápido!"
Como se toda esta loucura não bastasse, os novos carros importados são agora os que tem a direção do lado esquerdo, apropriados ao sistema da mão americana.
Ou seja, em Myanmar os veículos convivem democraticamente com todas as regras do mundo ao mesmo tempo - contando sempre, é claro, com a proteção do Buda todo poderoso.
(Continua no próximo blog)
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