Devo ter acionado sem querer algum botão esquecido do meu cérebro quando publiquei o texto sobre as emoções que os ataques terroristas à cidade de Nova York produziram em mim há dez anos atrás. É que, logo em seguida, muitas outras lembranças que eu julgava soterradas em um canto qualquer da memória, voltaram a aflorar, nítidas,
como se tivessem ocorrido ontem.
Uma das primeiras imagens que me ficaram marcadas na memória é a do rosto de um bombeiro que passava pela minha rua num carro de socorro, em direção ao Ground Zero ainda em chamas. Era muito jovem e estava sentado à janela do carro, com o braço apoiado para fora, e os olhos claramente na minha direção. Interrompi meu caminho para aplaudi-lo ali da calçada, em sinal de respeito e solidariedade, como tantos outros moradores da cidade faziam. Estou certa de que ele me viu, mas o danado nem se mexeu, indiferente ao aplauso. Nas telas de TV, o horror da tragédia começava a ser contabilizado: quase 3 mil desaparecidos, apenas algumas dezenas de corpos encontrados. De repente compreendi toda a dor contida no olhar daquele jovem bombeiro e fiquei imaginando as cenas infernais que ele já devia ter presenciado, na missão heróica de resgatar corpos e salvar vidas, muitas vezes arriscando a própria. Neste momento, a inutilidade dos aplausos desabou sobre mim.
Na verdade, havia muito pouco o que nós, moradores de Manhattan, podíamos fazer para ajudar. A Defesa Civil recomendou que todos nos mantivéssemos o mais longe possível do local da tragédia. Apenas profissionais experientes das áreas de saúde e resgate tinham permissão para trabalhar como voluntários. Ansiosos para ajudar de alguma forma, nós, simples moradores da cidade, formamos filas imensas à porta dos hospitais para doar sangue. Nem isso conseguimos fazer. As autoridades logo nos dispensaram, com a informação de que já havia reservas suficientes. Motivo: o ataque às torres gêmeas quase não deixou feridos. Vítimas fatais, sim - mas pessoas com necessidade de receber sangue, praticamente nenhuma. O surreal parecia não ter limites.
Por muitos meses após os ataques, moradores anônimos vinham depositar flores junto às fotos dos bombeiros que sacrificaram a própria vida tentando salvar a de outros. No total, 343 bombeiros morreram no local onde ficavam as torres do World Trade Center. As fotos publicadas aqui são de minha amiga Alessandra Silva, moradora do Upper East Side. Elas mostram a calçada do batalhão da rua 85 Leste, poucos dias depois dos ataques. No quadro de honra, os rostos dos nove heróis da nossa vizinhança, que desapareceram tragicamente no dia 11 de setembro.
Com o passar dos dias, em vez de diminuir, minha tensão aumentava. Sentia-me só. Meu telefone não tocava. Não conhecia quase ninguém na cidade. Na parede da cozinha, um pequeno quadro insistia em me anunciar o que eu já sabia de sobra: a vida é feita de amigos. Que falta me faziam os amigos naqueles dias difíceis em Nova York!
Passado um mês da tragédia, meu marido e eu tomamos uma decisão repentina: iríamos convidar todos os vizinhos do vigésimo-segundo andar do prédio onde morávamos para um happy hour em nosso apartamento. A bebida seria por nossa conta e quem quisesse poderia trazer algum tira-gosto para beliscar. Colocamos os convites por baixo da porta de cada um dos quinze apartamentos e, na hora marcada, aguardamos ansiosos a chegada dos convidados.
A primeira a chegar foi Evelyn Glasser, uma divorciada extravagante e coquete, de oitenta e poucos anos de idade, que logo se tornou uma grande amiga. "Vocês não vão acreditar", exclamou, esfuziante e feliz, assim que lhe abrimos a porta, "mas esta é a primeira vez que algum vizinho me convida para entrar em sua casa desde que me mudei para este prédio, há 21 anos atrás!" Junto com ela, a alegria entrou no nosso apartamento como um vendaval.
Vieram poucos vizinhos. Alguns justificaram sua ausência com bilhetes simpáticos deixados à nossa porta. Outros nem se deram o trabalho de nos dar qualquer satisfação - o que, longe de nos incomodar, nos era até previsível.
Mas, entre os que apareceram, criou-se um clima festivo. Foi reconfortante ver aquele pequeno grupo de pessoas, que até então nunca se haviam trocado palavra, conversando animadamente na sala do nosso apartamento. Por algumas horas, nos esquecemos dos nossos medos e inquietações, celebrando a alegria de estarmos simplesmente ali, reunidos na Grande Maçã ferida.
3 comentários:
Querida Monipin: suas palavras - escritas com coração - me estremesseram... que angústia viveu, linda amiga!! Me alegra saber que - onde você está - sempre brota alegria, amizade,... Que bom ter sua amizade, sensível dona de bom coração!!! Teruko Okagawa Monteiro, rio de Janeiro
Continuo triste, não estava lá mas já lhe disse sobre a importância de NYC na minha vida.
Não consigo ler as "homenagens" ou rever as brutais cenas dos ataques.
Mas o que você postou antes e agora essa Parte 2, sentimento puro, sim.
Obrigado, Monipin!
Monica, o melhor disso tudo é saber que alguém sempre tem energia para um convite colocado debaixo da porta e que alguém sempre tem a curiosidade alegre de explorar novos relacionamentos, como a sua vizinha animada. Por aqui, a TV passa muitas cenas da tragédia, depoimentos doídos e chorosos de quem perdeu um ente querido ou sobreviveu. O clima é de luto relembrado, remexido, muito triste mesmo. E toda a complexidade do ataque volta à tona, nesse momento difícil pelo qual o país está passando, ainda tentando se entender, se enxergar por trás das nuvens de fumaça que foram se erguendo, sorrateiras (mas nem tanto) durante os últimos anos. Mas o seu quadrinho na parede me inspira nesta manhã ensolarada da Flórida. Obrigada por compartilhar suas lembranças daquela época e de acionar também em mim uma reflexão mais desarmada do que senti quando tudo aquilo aconteceu. Um beijo e saudade.
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