terça-feira, 28 de junho de 2016

Sonhos olímpicos nos Lençóis Maranhenses

Ligo a televisão e lá está ele, todo sorridente, carregando a tocha olímpica às margens do rio Preguiças, no Maranhão. Não tenho a menor dúvida: é ele, sim.  Conhecido como Júnior por todos ali na região, ele é o guia que me havia levado, poucos dias antes, a explorar com um grupo de amigos o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses - paisagem de sonho, com dunas de areia branca que se espalham  por 1.550 quilômetros quadrados, a perder de vista, entremeadas por lagoas azuis.


Por dois dias seguidos, Júnior nos conduziu por essas dunas inquietas, que o vento desloca sem cessar. Se hoje uma montanha de areia está aqui, amanhã ela bem pode estar no meio de um dos lagos, que então passa a ser dois, desnorteando o visitante menos avisado.

Nada é permanente nos Lençóis. A cada ano, na época da seca, as lagoas desaparecem nas areias, para subirem novamente à tona meses depois, quando o lençol freático se encharca de chuva. 



Algumas pessoas se referem a este lugar mágico como "Deserto Brasileiro". Pessoalmente, considero esta expressão um engano do olhar.  Para mim, os Lençóis nada têm de desértico. São cheios de água, vida, movimento, magia e história.



Guiados pelo Júnior, subimos e descemos incontáveis montanhas movediças, os pés afundados na areia, nossos olhares cravados no infinito de possibilidades daquela paisagem, verdadeiro abraço de 360 graus.




Durante a caminhada nas dunas, de vez em quando Júnior rompe o silêncio para nos falar com entusiasmo sobre a vida nos Lençóis. Ele parece conhecer bem o nome de cada lagoa, cada gramínea e cada pequeno animal que compõem aquele bioma maranhense, ainda pouco explorado pela comunidade científica.

Júnior tem 42 anos e nasceu em São Luís. Sua vida parece ter a mesma característica de mutabilidade constante que as dunas - a começar pelo próprio nome. Foi batizado como Jony Silva, mas hoje todos o conhecem como Júnior Gomes. Casou-se e teve filhos cedo. Quando a mulher os deixou em 1995, Júnior se mudou com os filhos para Barreirinhas, para morar com o avô, que precisava de apoio.  Recém-viúvo, o avô estava fisicamente muito debilitado, depois de ter cuidado por dez anos da avó enferma, que não tinha as duas pernas.

Naquele tempo, Barreirinhas era um povoado pouco conhecido e sem maiores atrativos turísticos. Apesar do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses ter sido criado em 1981, na verdade só foi aberto ao turismo a partir do ano 2000.  Os únicos que conheciam toda a beleza e magia daquelas dunas de acesso difícil eram os moradores da região.

Assim que se estabeleceu em Barreirinhas,  Júnior abriu um pequeno negócio de conserto de bicicleta. Como não havia eletricidade na região, ele mantinha um carregador de bateria num canto do seu negócio, para prestar serviços aos moradores da região. Certo dia, um senhor chamado Constantino passou lá para consertar a bicicleta. Enquanto realizava o conserto, Júnior conversou com o freguês e ficou sabendo que ele precisava da bicicleta para se deslocar até a cidade e recarregar uma bateria. "Quanto é que eles lhe cobram para fazer a recarga?", Júnior perguntou. "Cinco reais", respondeu sr Constantino. Quando Júnior soube que a bateria era para ele poder ouvir uma rádio local que anunciava falecimentos, nascimentos, avisos de chegada de barcos, marcação de encontros entre pais e filhos etc - resolveu não cobrar nada pelo serviço da recarga. Os dois ficaram amigos. Como agradecimento ao serviço prestado, o sr Constantino se ofereceu para levá-lo a conhecer um local de beleza extraordinária, que os moradores dali chamavam de "Morraria".

"Na hora eu nem dei muita importância ao convite",  relembra Júnior. "Eu imaginava uma grande área cheia de morros verdes, desses comuns." Quando finalmente resolveu ir até lá e avistou pela primeira vez os Lençóis do alto de uma duna, ficou deslumbrado. Naquele momento,  sua vida mudou completamente.

A partir dali, Júnior passou a trabalhar com ecoturismo, numa época em que este tipo de serviço estava apenas começando na região. Em 2008, tornou-se monitor ambiental do Parque Nacional, com especialidade na flora e geografia locais. Junto com um filho,  hoje com 19 anos, abriu o Hostel Rotativa em Barreirinhas, à beira do rio Preguiças, que recebe jovens turistas de vários países. Além de guia turístico, Júnior também é fotógrafo profissional e nunca se cansa de registrar as imagens dos Lençóis, que a cada dia o surpreendem com uma beleza diferente.

Ano passado, Júnior foi escolhido como um dos 12 mil condutores que irão percorrer 329 cidades de todo o Brasil com a tocha olímpica dos Jogos de 2016.  Escolha bem merecida, para um homem de muitos sonhos e muitas realizações na vida com o esforço do próprio trabalho.




segunda-feira, 20 de junho de 2016

O menino e o Homem Aranha

- Você existe de verdade? - pergunta Gabriel, quando o Homem Aranha se abaixa para abraçá-lo na cadeira de rodas, no quarto da Pediatria do Hospital Federal da Lagoa, onde ele está internado há várias semanas. Gabriel faz hoje 10 anos de idade. 

- É claro que eu existo! Só não posso revelar minha verdadeira identidade! - responde o Homem Aranha, tentando disfarçar a voz embargada.

O quarto está todo enfeitado de balões coloridos. A pequena mesa encostada à parede, que normalmente contém remédios e bandejas de plástico, hoje tem um bolo de aniversário e brigadeiros, trazidos pela equipe de médicos, enfermeiros e funcionários do hospital. Eles estão todos reunidos ali no quarto, muitos com chapeuzinho de papel na cabeça, assistindo sorridentes ao encontro do menino com o super-herói.

Desde que adoeceu, nas férias do verão passado, Gabriel não pôde mais frequentar as aulas na escola. Nos últimos meses, o Hospital tem sido o seu lar. As pessoas que lá trabalham têm sido seus amigos mais próximos, quase parte da sua família.

Nessas últimas semanas, estive algumas vezes com o Gabriel, contando histórias para lhe dar um pouco de alegria e tentar lhe restituir alguma sensação de normalidade, neste cotidiano nada normal de uma criança. Ele é um menino esperto, curioso e antenado, talvez até acima da média. Mas está sem aulas, sem o convívio com meninos de sua idade, sem desafios intelectuais. 

Hoje, esta singela demonstração de solidariedade da equipe do Hospital da Lagoa mexeu muito comigo. Num país quebrado como o nosso, onde a má gestão, a irresponsabilidade e a falta de ética dos nossos governantes achincalharam o atendimento na área da Saúde aos brasileiros mais indefesos e carentes, a atitude amorosa daqueles profissionais me trouxe um pouco de esperança no futuro de um Brasil melhor.

Parabéns pelo seu trabalho dedicado, equipe da Pediatria do Hospital da Lagoa! Hoje senti vontade de lhes fazer a mesma pergunta que o Gabriel fez ao Homem Aranha: será que vocês existem de verdade?