quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Adeus a Edson Nery da Fonseca

Na noite de abertura da 12a Festa Literária Internacional de Paraty eu estava toda feliz, pois tinha conseguido ingresso de última hora. A Tenda dos Autores estava lotada e todos aguardavam sorridentes o início dos debates sobre o grande Millôr Fernandes.

Mas aquela noite, que prometia ser de muitas risadas, para mim acabou perdendo a graça logo nos primeiros minutos, quando o curador da Flip leu uma nota sobre o falecimento do escritor, pesquisador, professor e bibliotecário Edson Nery da Fonseca - uma das pessoas mais brilhantes que já passaram pela Flip e possivelmente a que mais me emocionou através da palavra. Conversador e lúcido até o último minuto de sua vida, o grande pesquisador faleceu no dia 22 de junho em sua casa, em Olinda, aos 92 anos de idade. Enquanto o curador prosseguia com seu discurso de abertura da Flip, já com outros assuntos mais alegres, minha cabeça parou ali naquela notícia triste. Em silêncio, fiz uma  pequena oração de despedida a este homem, com quem tive o prazer de estar pessoalmente nas duas Flips em que ele participou como palestrante.

Na primeira vez, em 2009, eu nunca tinha ouvido falar naquele velho bilbiotecário. Na verdade, fui assistir ao debate sobre o poeta Manuel Bandeira do qual ele iria participar atraída pela presença do jornalista Zuenir Ventura, que eu admiro muito. A surpresa foi geral: só deu Edson Nery da Fonseca, do começo ao fim. Não sobrou para mais ninguém. Foi só abrir a boca no palco, que aquele senhor idoso, de aparência frágil, que se locomovia com dificuldade apoiado numa bengala, de repente transformou-se num jovem apaixonado pela vida, cheio de energia. Ele nos comoveu a todos (inclusive ao Zuenir, que parecia tão embevecido quanto nós, da plateia) com histórias curiosas sobre o Bandeira e longos poemas recitados com paixão, sem titubear. Confesso, sem pudor, que naquela apresentação sua poesia me levou às lágrimas. E desconfio que não fui a única pessoa a se emocionar naquele dia.

No ano seguinte, já me sentia a Fã Número Um do Nery da Fonseca: tinha lido alguns de seus livros e conversado com amigos que o conheciam pessoalmente. Com antecedência, comprei ingresso para a mesa da qual ele iria participar, como um dos maiores especialistas na obra de sociólogo Gilberto Freyre (o autor homenageado da Flip de 2010), do qual era amigo pessoal. No final de mais uma brilhante apresentação, estive com ele na mesa de autógrafos, onde lhe disse estar contente de revê-lo naquele ano. "Minha filha, esta é com certeza a última vez que venho a Paraty", disse-me com ar cansado. "A viagem de cinco horas numa van, do aeroporto do Rio até aqui, é demais para a minha idade." Infelizmente, sua previsão estava certa.

Em janeiro de 2012 ainda pude vê-lo mais uma vez, de longe, através das grades da janela de sua casa de Olinda, próxima ao mosteiro de São Bento. Ele já estava bastante enfermo e passava os dias deitado numa cama especial, instalada bem no meio da sala, sempre acompanhado por algum amigo.

Qualquer pessoa abordada nas ruas sabia nos dar notícias dele. Era querido e respeitado por todos. Em 2013, foi um dos homenageados da versão pernambucana da Flip, a Fliporto.

Seu livro de memórias, corajoso e escancarado, surpreendeu muita gente. O título, inspirado nos versos do poeta francês Guillaume Apollinaire, é poesia pura e, pelo menos para mim, delicadamente consolador: Vão-se os dias e eu fico.

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Se você também quiser entender porque me emociono tanto com o Edson Nery da Fonseca, clique aqui neste link do Youtube para vê-lo recitar um poema do Bandeira. São só dois minutos: você vai me agradecer.



Ai, que saudades do Millôr!

Tem gente que parece ter nascido só para nos cutucar e desafiar. O genial jornalista, cartunista, escritor, filósofo, tradutor Millôr Fernandes, era dessas pessoas. Ainda hoje suas frases nos surpreendem como um tiro certeiro no intelecto. Em vez de dor, o que vem depois do disparo é quase sempre uma deliciosa gargalhada.  Eu, pelo menos, me acabei de rir na 12a Festa Literária Internacional de Paraty (realizada de 31 de julho a 3 de agosto), relembrando as incríveis tiradas do Millôr, o homenageado deste ano. Algumas delas:

"O Homem é o macaco que não deu certo."

"Basta um avião sacudir um pouquinho mais e logo todos os passageiros ficam parecidos com a foto do passaporte."

"Quando todo o mundo quer saber, é porque ninguém tem nada a ver com isso."

"Chato é uma pessoa que não sabe que 'Como vai?' é um cumprimento e não uma pergunta."





Foi uma farra deliciosa a mesa de debates intitulada "O Guru do Méier", com três jornalistas e cartunistas que trabalharam com o Millôr: Claudius, Sergio Augusto e Cássio Loredano.



Com a correta mediação do jornalista Hugo Sukman, poucas vezes vi na Flip um painel de debatedores de qualidade tão equilibrada, cada qual com seu estilo próprio e todos contribuindo de forma relevante à discussão.  Muito mais do que vontade de dar risada com as tiradas do Millôr, o que de fato senti neste debate foi uma enorme saudade de suas charges geniais, que tantos problemas lhe trouxeram na época da ditadura militar.

Ah, que falta nos faz hoje um Millôr em nossos jornais e revistas, principalmente nestas semanas que antecedem as eleições - insuportável festival de déjà-vus, platitudes e canalhices. Suas reflexões permanecem atuais como nunca:


"Democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim."

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

"Os comunistas são contra o lucro. Nós somos apenas contra os prejuízos."

"Está bem. Deus é brasileiro. Mas para defender o Brasil de tanta corrupção, só colocando Deus no gol."

Ei, pessoal! O rei está nu! Você não viu? Então olhe de novo. Com Millôr, voltamos a enxergar a vida com olhos de criança e a agudeza do seu desconcertante espírito crítico, sempre "livre como um táxi".