quinta-feira, 28 de abril de 2011

Mozart e Myanmar


Viagem a Myanmar - parte 5

- É fácil a gente obter um visto de turista para entrar no Brasil?

A primeira vez que ouvi esta pergunta em Myanmar, achei que meu interlocutor queria uma resposta "normal", do tipo "Sim, basta ir ao consulado brasileiro mais próximo, preencher os formulários etc...". Mas quando outras três pessoas me fizeram a mesma pergunta em ocasiões diferentes, achei estranho.  Percebi que havia uma intensidade pouco comum por trás daquela indagação diplomática, que volta e meia pipocava nas nossas conversas.

Aos poucos me dei conta de que o que as pessoas buscavam era muito mais um afago na autoestima nacional do que uma informação burocrática. Parecia-me que a resposta que gostariam de ouvir era algo do tipo: "Sim, existe um país do outro lado do mundo, belo e generoso, que está à espera de sua visita de portas abertas, mesmo que você não tenha nenhum plano de ir até lá."

Para a maioria das pessoas que vivem em Myanmar viajar ao exterior é quase um sonho impossível. Não que as distâncias sejam muito grandes. Para ficar só naquela região, Myanmar faz fronteira direta com cinco países: China, Índia, Bangladesh, Laos e Tailândia. Cingapura, Malásia e Indonésia estão logo ali na esquina. Tampouco lhes falta vontade. O dinheiro deles é curto, claro. Mas muitos teriam condições de viajar ao exterior sem maiores despesas, hospedando-se em casa de amigos e ajudando nas tarefas domésticas.  Mesmo assim, é raro a gente encontrar alguém que já tenha cruzado a fronteira do país alguma vez na vida.

"Eu já estive na China", conta-me sorridente Thet Win Naung, nosso guia da região sudeste de Myanmar. "Que interessante", começo a dizer, já pensando em mil perguntas sobre suas impressões da viagem. Ele me corta na hora, com ar de brincadeira: "Mas foi só por cinco minutos, quando fiquei com os dois pés ali do outro lado da linha da fronteira!" - e explode numa gostosa gargalhada.

O obstáculo maior, que para muitos parece intransponível, é a obtenção do visto de entrada em um país estrangeiro - qualquer país -, pelo simples fato de serem cidadãos de Myanmar,  há mais de quatro décadas sob um governo militar que os mantém isolados do resto do mundo.

Assim, quando Thin Thin,  nossa guia de Mandalay, me disse que já tinha viajado à Europa, minha primeira reação foi de incredulidade. Pensei que estivesse brincando comigo, como o outro guia havia feito. Mas Thin Thin não era mulher para brincadeira. Pelo contrário: sempre direta e rápida, mostrava-nos todas as atrações turísticas locais com correção, mas sem abertura para maiores intimidades. Por isso fiquei surpresa quando ela interrompeu de repente a caminhada que fazíamos em torno de um velho monastério para me contar um pouco dessa viagem marcante, ocorrida em 2004.

Ela havia tirado férias para visitar uma irmã que morava na Áustria e aproveitou para conhecer três cidades européias: Viena, Paris e Trieste. Em Trieste ficou encantada com as esculturas que viu nos museus e nas ruas. Em Paris vibrou com a subida à Torre Eiffel e o passeio de Bateau Mouche no Sena. Mas foi em Viena que o coração dela bateu mais forte:

- Em Viena fui pela primeira vez na minha vida a um concerto de música clássica. Era Mozart.

Nesse momento, Thin Thin fechou os olhos. Estava visivelmente emocionada.  Com delicadeza, procurou mentalmente as palavras certas em inglês para descrever a sensação mágica que foi a de ouvir Mozart pela primeira vez ao vivo, intenso e vibrante, a poucos metros de onde estava. Era como se a orquestra inteira estivesse tocando ali só para ela, disse.

- Eu nunca tinha ouvido aquela música antes, mas entendi tudo.

Foi um momento curioso, esse. Duas mulheres praticamente estranhas uma para a outra, vindas de culturas completamente diversas, conversando num idioma estrangeiro para ambas, nos arredores de Mandalay,  sobre a beleza do poder transformador da música de Mozart.

- A música é que é a verdadeira linguagem internacional. Ela é capaz de nos unir a todos nesse mundo, sem necessidade de tradução - resumiu Thin Thin, no seu inglês fluente, mas com sotaque inevitável.

Yes, indeed, Thin Thin! Tô contigo e não abro!

E dali prosseguimos nosso caminho lado a lado, os pés descalços, pelos belos monumentos históricos de Myanmar, sob a batuta de Mozart.



quinta-feira, 7 de abril de 2011

Gorda... eu?!

Viagem a Myanmar - parte 4
- Que tal a gente parar aqui para tirar umas fotos?
Quem deu a ideia foi o guia Thet Win Naung, que nos levava de carro para conhecer a região rural de Kalaw, zona montanhosa de Shan, estado no centro-leste de Myanmar. A mais de 1300 metros de altitude, Kalaw tem clima ameno e por isso era o local de veraneio preferido dos ingleses na era colonial. Hoje atrai  visitantes aventureiros, que gostam de fazer trecking em regiões ainda pouco exploradas pela indústria do turismo.
Nosso carro parou no meio da estrada. Olhei em volta e a principio não vi nada que justificasse aquela parada. Era um imenso campo de terra seca e avermelhada, sem nehuma estupa, templo ou casa por perto.

Com um pouco mais de atenção, avistei duas mulheres arando a terra perto da estrada. Na verdade faziam apenas a limpeza do campo para o semeio do arroz, que só irá começar quando vierem as chuvas,
daqui a um mês. Uma delas trabalhava de cócoras e eu quase não conseguia distingui-la na paisagem, pois a cor de sua pele, curtida pelo sol, se confundia com a cor da própria terra.
- Vamos lá falar com elas? - propõe Win.
Fiquei na dúvida, temendo que a intromissão no trabalho poderia causar algum incômodo a elas.
- Que nada! Venha comigo que eu quero mostrar de perto o tipo de turbante e vestimenta que elas usam, típicos daqui da região - disse Win, completamente à vontade.
Meio constrangida, segui nosso guia até o local onde as mulheres trabalhavam. Fiquei impressionada com a competência adorável que Win demonstrou ter para se aproximar das pessoas e ganhar sua confiança imediatamente. Em poucos minutos estávamos todos ali "conversando" animados, entre sorrisos, gestos e algumas frases traduzidas pelo guia.

As duas mulheres pareciam estar tão fascinadas com a minha presença ali quanto eu pelo fato de estar perto delas. Nós três observávamos atentamente cada detalhe das nossas roupas, comparávamos as cores das nossas peles e cabelos. Sem entender uma palavra do que dizíamos umas à outras, a gente se entendia perfeitamente com a linguagem universal do corpo humano. Tirei fotos e mostrei-as às duas. Rimos juntas quando nos vimos reunidas no visor da máquina fotográfica.




-Quantos anos você tem? - quis saber de repente a mais velha, através da tradução cuidadosa do nosso guia, sempre atento e gentil.
Desconfio que foi a primeira vez, desde que completei sessenta anos em janeiro passado, que me perguntaram a idade de forma tão direta. Confesso que titubeei um pouco, mas disse a minha idade sem mentir, em alto e bom som.
- Sessenta?!? - espantou-se a mais nova. - Não parece, de jeito nenhum!
Não sei dizer se a jovem mulher estava sendo sincera ou apenas cortês. Mas fiquei feliz com a resposta e dei-lhe um beijo de agradecimento.
De repente, senti que me apalpavam o traseiro e olhei assustada para trás. Era a mão da agricultora mais velha que passeava sem constrangimento pela região abaixo da minha cintura, investigando minha geografia carnal.
- Wa-rê! - disse ela, rindo.
Assustada, pedi ao guia que me traduzisse o que ela dizia. Meio constrangido, Win esclareceu:
- Ela está dizendo que você é gorda...
Foi um momento tão inesperado e engraçado, que sinceramente na hora não fiquei chateada com o comentário espontâneo.
- Gorda... eu?!
E caímos todos na maior gargalhada.

Já no carro, prosseguindo viagem, eu não conseguia tirar aquele comentário da cabeça. Tentei então me consolar interiormente: num país onde as pessoas são muito magras, chamar alguém de"gordo" talvez seja um grande elogio.
Talvez.



quarta-feira, 6 de abril de 2011

O dono de Bagan

Viagem a Myanmar - parte 3


Mingala-bá! Bom dia! Meu nome é Aung Win e sou seu guia aqui em Bagan.
Foi bom encontrá-lo logo no desembarque do aeroporto. Com firmeza, Win detém minha mão quando vou procurar o dinheiro para pagar a taxa que o governo cobra dos turistas na chegada àquela cidade, uma das mais fascinantes atrações de Myanmar, no sudeste asiático.
- Já está tudo pago - me assegura.
A atitude do guia era respeitosa e transmitia segurança. Era o próprio dono do pedaço.
Empertigado, impecavelmente vestido com o longyi, traje tradicional de Myanmar  (espécie de sarongue até o tornozelo, amarrado com um nó na cintura), o ex-professor de ensino básico me deu a impressão de que estava pronto não somente para apresentar as riquezas culturais da região, como também determinado a me ensinar o idioma nacional naqueles próximos três dias.
- "Aung" quer dizer "brilhante" e "Win" quer dizer "luz". Meu nome significa "luz brilhante"! 
- Você nasceu aqui mesmo? – perguntei , só para matar o tempo, enquanto esperávamos a chegada das malas na esteira do aeroporto.
Em vez de um simples “sim” ou “não”, o que ouvi foi um verdadeiro discurso cívico:

- Nasci e fui criado em Bagan, que para mim é o lugar mais lindo do mundo. Segundo a Unesco, a região faz parte do patrimônio cultural da humanidade.  Não há nada igual no planeta. Amo tanto isto aqui que jamais aceitaria viver em outro lugar. Posso ser um homem pobre em termos de bens materiais, mas interiormente me sinto muito rico por viver aqui.

OK, Win, você venceu!  Nem vou questionar a validade daquele discurso apaixonado, mesmo sabendo que Win jamais colocou os pés  fora do seu país natal. Daqui para a frente, entrego-me feliz da vida aos cuidados profissionais deste homem que para mim é, de fato e de direito, o verdadeiro dono de Bagan. Estou convicta de que jamais conseguiria encontrar um guia melhor na região.

Realmente, percorrer os templos, pagodes e estupas de Bagan sob a orientação de Win foi uma viagem dentro da viagem. Ele conhece cada recanto, cada árvore, cada construção erigida naquela imensa planície que foi o quintal de sua casa, o lugar de tantas brincadeiras de menino.
- Meu irmão e eu percorríamos todos os dias esta área para juntar galhos secos e levar para a nossa mãe acender o fogão e preparar a comida. Conheço cada um desses templos por dentro e por fora, sem exceção.


As lembranças se avolumavam em cada lugar que visitávamos.




- Essa árvore foi plantada por mim e meus colegas de turma quando éramos bem pequenos - disse ele, apontando para a acácia frondosa na frente do nosso hotel. - Bem aqui ficava a nossa escola, que foi demolida. 


Com voz contida, acrescenta:
- Demoliram tudo por aqui...




Ele diz pouco, mas sei que se refere ao dramático fato ocorrido em 1990, quando o governo obrigou centenas de habitantes locais a abandonar suas casas na zona arqueológica para se instalar numa área desabitada a cinco quilômetros ao sul, hoje um povoado chamado Nova Bagan. 


Famílias inteiras, cujos antepassados haviam nascido e se criado naquelas terras, não tiveram outra escolha senão empacotar seus pertences e mudar-se. Elas receberam do governo a posse de novos terrenos, materiais de construção, algum dinheiro e o prazo de apenas uma semana para deixarem suas casas. A família de Win foi uma delas.






- Por vários meses tivemos que viver como refugiados, em cabanas improvisadas, enquanto construíamos nossas casas - conta Win.
Mas logo muda o tom da conversa e prossegue com recordações mais felizes:
- A gente brincava de esconde-esconde aqui dentro deste templo – relembra, enquanto percorremos os corredores do majestoso Ananda Paya , que para ele é o mais belo de todos os templos. 


– Está vendo esta porta? Está pregada no chão.
Olho para aquela peça monumental de madeira maciça trançada:  sólida, bela.  Win prossegue:

- Quando eu era pequeno,  esta porta ficava solta. A gente podia abri-la e fechá-la à vontade, como qualquer porta normal. Meus irmãos e eu adorávamos nos pendurar nela e ficar nos balançando para a frente e para trás... Ninguém brigava com a gente por causa disso,  era como se estivéssemos em nossa própria casa.

Os olhos dele brilham com a lembrança. Quando lhe peço que mostre como era a brincadeira,  Win não se faz de rogado:  de um salto, sobe com os pés descalços no seu “balanço” monumental e sorri satisfeito, com jeito de menino que acaba de fazer uma travessura.  


A porta permanece imóvel, acorrentada ao chão do velho templo, mas a imaginação daquele homem maduro corre solta, entre as ruínas centenárias de Bagan.










 








segunda-feira, 4 de abril de 2011

No alto da estupa, aos quatro ventos de Myanmar

Viagem a Myanmar - parte 2

No topo de uma estupa de Bagan, cidade histórica e antiga capital de Myanmar, no Sudeste Asiático, dois fatos surpreendentes e inesquecíveis me aguardavam.





O primeiro foi a estonteante visão de 360 graus da região, com aqueles milhares de templos, pagodes e estupas budistas parcialmente encobertos pela névoa, a perder de vista na planície empoeirada. Nenhuma foto, nenhum livro - nem mesmo filme algum - nos prepara para o deslumbramento que a paisagem mágica nos reserva, ali a nossos pés. 




São nada menos de 4.400 edificações budistas construídas no transcorrer de apenas um século, há oitocentos anos atrás. Cada uma delas tem uma história diferente a contar - de devoção espiritual, vaidade ou ambição política. Foi do alto daquela estupa de Bagan que entendi perfeitamente o significado da palavra "estupendo".  Salpicados por quarenta quilômetros quadrados, aqueles monumentos desafiam qualquer tentativa de explicação racional. São de tipos variados: imensos, diminutos, em tijolo vermelho, pintados de branco, decorados em ouro, despojados, grandiosos ou simples ruínas. Os chamados templos possuem galerias com uma infinidade de imagens de Buda e alguns  são decorados com pinturas murais. 




Já os pagodes e as estupas são construções sólidas, ou seja, não podemos entrar dentro delas. Dizem que inicialmente eram construídas como repositórios de relíquias ou oferendas, não necessariamente valiosas, com o objetivo de se ganhar "crédito cármico".  Ai daquele que destruir uma estupa! Estará condenado a voltar atrás muitos passos na longa e penosa caminhada à perfeição. 


As estupas não abrigam restos mortais nem contêm oratórios. Elas  me dão a simpática impressão de que foram construídas simplesmente para nos indicar a direção ao céu. "Ei, vocês aí de baixo! Olhem aqui para cima", parecem nos dizer.



A segunda surpresa que me aguardava lá no alto, muito menos edificante que a primeira, aconteceu quando ainda tentávamos ajustar a visão para abarcar tanta beleza e magia.  Mal havíamos nos equilibrado de pé no topo da nossa estupa, ainda resfolegantes com o esforço da subida,  fomos bruscamente abordados por dois jovens vendedores de souvenirs que estavam ali escondidos, aguardando nossa chegada:

- Where are you from?


Ai, meu Buda! Essa não! Querem saber de que país somos? Ora, tenham dó... Nenhum turista merece isso, principalmente depois de galgar tantos degraus até o topo da estupa!  

A técnica dos jovens para atrair compradores é tão surrada que, para ser sincera, até sinto um pouco de pena deles. Mas logo penso no estrago que fizeram, quebrando a poesia da paisagem quase mística que nos rodeava. Meu coração se endurece. Para me vingar do anticlímax, em vez de lhes responder à pergunta, rebato com outra:

- De que país vocês acham que somos? 

O desafio cativou a atenção dos dois. Ficaram quase doidos: França? Não. Alemanha? Não. Itália?

- Nenhum desses. Nosso país não fica na Europa.

E seguiram desfiando o rosário de nomes de países que estavam acostumados a ouvir no contato com turistas. Estados Unidos? Não. Canadá? Não. Austrália? Nova Zelândia? A cada negativa, o interesse dos dois rapazes aumentava. Notei que não haviam mencionado nenhum país da América Latina, de onde poucos turistas deviam chegar ao belo país asiático, mas achei melhor não dizer nada. 


E os dois continuaram:

- Espanha?... Inglaterra?...

- Eu já não lhes disse que não ficava na Europa?

Um deles, exaurido, fez cara de quem jogava a toalha. O outro perguntou timidamente, como se aquela fosse a última opção possível:

- ...Bagan?...

Todos rimos com o senso de humor dele. Resolvi ajudá-los e dar uma boa dica:

- Vocês gostam de jogar...?

Eu ia dizer “futebol”, mas não houve nem  tempo de terminar a pergunta. De alguma forma a palavra  brotou repentina entre nós, como uma senha mágica. Em fração de segundo, um dos rapazes abriu um sorriso e gritou desinibido, com o vigor de quem chuta a bola certeira no gol:

- Brasiiiiiiil!!!

Fico até constrangida de confessar, mas foi no alto daquela estupa em Bagan, rodeada por um dos cenários mais fantásticos construídos pelo homem que já tive o privilégio de contemplar, que senti o poder barato  que as distâncias geográficas às vezes exercem no emocional da gente.

Só sei dizer que foi doce ouvir o nome do meu país tão distante, gritado com entusiasmo por um jovem birmanês, aos quatro ventos de Myanmar...

sábado, 2 de abril de 2011

Mudei de nome em Myanmar


Escrevi este artigo durante a viagem de duas semanas que acabo de fazer a Myanmar, este país fascinante do Sudeste Asiático, tão pouco conhecido no lado de cá do nosso planeta. Foi a segunda vez que estive em Myanmar. A primeira foi há treze anos atrás e me causou grande impacto, mas a viagem se limitou à cidade de Yangon. Só agora pude concretizar o sonho de conhecer um pouco melhor o país, sua história, tradições, arte e riquezas naturais. Cheia de contrastes de todos os tipos, a cultura milenar de Myanmar é uma das mais belas e antigas do mundo, que hoje luta contra todo o tipo de adversidades políticas e econômicas. Cada minuto vivido neste país foi para mim de grande aprendizado e deslumbramento. Este é o primeiro texto de uma série que pretendo escrever sobre esta viagem a Myanmar.

**************************************************

Ontem ganhei um nome novo aqui em Myanmar: agora podem me chamar de Thit Sar Shwe. O nome me foi dado num jantar na casa da Myo Nwe, nossa guia em Yangon, para celebrar meus sessenta anos, completados em janeiro. O convite foi feito quando ela soube que esta viagem a Myamar havia sido o presente de aniversário. “Oba, festa é comigo mesmo!”, pensei. Aceitei o convite na hora, feliz com a possibilidade de conhecer melhor a cultura deste país fascinante, na intimidade da vida familiar. Mal sabia que o presente que eu iria ganhar seria bem mais valioso que um simples jantar de aniversário.

À hora marcada, Myo veio nos buscar de táxi no hotel e nos levar à sua casa. Quando ainda faltavam alguns quarteirões, ela sugeriu que saltássemos do táxi para completar o trajeto em trishaw - aquele triciclo de transporte de pessoas em curtas distâncias, tão comuns nas cidades asiáticas. E foi assim, em grande estilo, a bordo de trishaws, que apeamos à porta da casa de Myo, num condomínio bem arborizado, com crianças brincando na rua, onde todos os vizinhos parecem se conhecer. Os olhares da vizinhança caíram todos sobre nós, raros visitantes de terras estrangeiras.

Quando entramos, fomos recebidos com alegria pela filhinha de Myo, a saltitante Wai Wai, de dois anos e meio, e pela sua mãe, Daw Aye Yee, professora aposentada de 67 anos. Depois dos efusivos abraços de boas vindas, muitos sorrisos e poucas palavras, ninguém sabia ao certo o que fazer com a gente. As poucas cadeiras estavam encostadas nas paredes e o meio da sala, vazio. Em um canto, a televisão transmitia um programa em DVD com personagens infantis, cantando músicas para crianças no idioma Myanmar. 

E agora, o que fazemos? Onde nos sentamos? Nas cadeiras ou nesses bancos baixinhos, como preferem as pessoas daqui? Será que é bom ir à cozinha para ajudar? Ou isso pode atrapalhar?

Na indecisão, acabamos ficando ali mesmo de pé, plantados no meio da sala. 


“Querem chá?”, nos oferece Myo. Ótimo, queremos, sim. Pelo menos é algo para manter nossas mãos ocupadas. Myo vai buscar duas xícaras de vidro, sem pires, num móvel entulhado de objetos, ao lado do family shrine, um pequeno altar dourado com imagens de Buda, oferendas de frutas, flores, incenso e copos de água. Tudo ali me parece meio confuso e desarrumado, mas Myo encontra o que quer rapidamente e nos serve o chá de uma garrafa térmica. Enquanto tomamos os primeiros goles, conversamos sobre as fotos antigas da família do marido em preto e branco que estão penduradas na parede, melancólicas. 

Daw Aye Yee traz para o meio da sala a mesa onde iremos jantar. A mesa, depois de armada, não terá mais do que trinta centímetros de altura. É que em Myanmar as pessoas preferem  se sentar no chão ou em banquinhos que parecem feitos para crianças, em vez de usarem cadeiras. Por cima de uma toalha simples, que mal cobre a superfície, os utensílios do jantar são espalhados sem local definido: alguns poucos talheres, xícaras, pratos e copos desconjuntados.  Completamente à vontade, Wai Wai brinca com esses objetos como se fosse a própria Alice no País das Maravilhas. Tudo naquela sala é do seu tamanho dela e ao alcance da sua mão.


Myo sai da sala e em seguida reaparece com uma ajudante, trazendo um peixe numa travessa, assado na brasa, para a gente admirar. O peixe está preto, com a pele esturricada de carvão. Tem olhos, dentes, rabo, tudo. "Que bonito", digo. Tiramos uma foto - clic! - e o peixe desaparece pela cozinha adentro, sem maiores explicações.

Também sem explicações, aparecem na casa novas pessoas pela porta da rua, sempre aberta. Ninguém nos apresenta a elas e ficamos sem saber como inseri-las no contexto da noite.

Um homem esquálido, com pouco mais de trinta anos, senta-se no chão e nos espia timidamente de longe. Uma mulher jovem, bonita e vestida à moda ocidental, com um tailleur comportado de cor neutra, entra sorridente pela sala adentro e nos cumprimenta em inglês como se a estivéssemos esperando. Depois de algum tempo, Myo esclarece: é apenas uma amiga, trabalha num banco em Yangon, veio jantar com a gente. 

Finalmente o marido da Myo chega do trabalho e é recebido com grande alarde pela pequena Wai Wai. Chama-se Ko Htwe e é motorista de uma van de turismo, da qual é proprietário. Com timidez, pede-nos desculpas pela demora e explica que teve que resolver um problema do carro.  

Enquanto isso, Myo começa a trazer o jantar para a mesa. Em uma pequena panela elétrica com tampa de vidro, ela prepara uma deliciosa sopa de macarrão, vegetais, tofu e dumplings, que vai nos servindo aos poucos, com acompanhamento de molho de tamarindo. Tudo feito em casa por ela,  no maior capricho.


Wai Wai corre ao redor da mesa, beliscando os alimentos aqui e ali, tagarelando sem parar. Está obviamente feliz. Quando terminamos de comer a primeira rodada da panela, Myo volta a acrescentar mais ingredientes crus ao caldo, que assim vai ficando cada vez mais apurado e saboroso.

Enquanto isso, o peixe, já frio, continua nos olhando da travessa no meio da mesa. De repente, Myo se levanta, acende uma vela e a espeta bem no meio da barriga do peixe. Neste momento, todos param o que estão fazendo e me olham com ansiedade. A um pequeno sinal, começam a cantar “Parabéns a você” em inglês, batendo palmas. É o "bolo" de aniversário mais original de todos os que já tive. Quando chega aquele momento em que se anuncia o nome do aniversariante, o sorriso no rosto de cada um deles fica ainda mais iluminado:

"Happy birthday, dear... (e aqui todos fazem uma pequena pausa dramática, os olhos brilhando)...Thit Sar Shwe!"

Então era este o momento mais aguardado da noite: a revelação do meu nome em Myanmar! Todos riem e aplaudem muito, felizes com a surpresa que me preparavam há dias! 

Daw Aye Yee explica o significado do nome que ela mesma escolheu, depois de uma série de cálculos e estudos auspiciosos, com base no dia da semana em que nasci (sexta-feira): “Thit Sar” significa “gladíolo”, flor nativa de Myanmar, que os jovens oferecem tradicionalmente às namoradas quando lhes querem declarar fidelidade e amor eterno. “Shwe” significa “ouro”, mineral onipresente no país. "It’s a very good name, very elegant", me assegura Myo.

A amiga bancária escreve meu nome na lousa da parede da sala e todos me ajudam a pronunciar corretamente aquelas três sílabas de que tento me apropriar como parte de minha nova persona. Para meus ouvidos não-tonais, o novo nome soa mais ou menos como "te-sá-chuê".

Terminada sua função de bolo de aniversário, agora já podemos destrinchar o peixe assado. Faltam talheres? Então vamos comer com as mãos mesmo, aqui está a caixa de lenços de papel para limpar os dedos. Huuummm... Delicioso!


Hora de ir. Myo faz questão de nos acompanhar de volta ao hotel. Na van da família, está também a pequena Wai Wai, de chapéu na cabeça, pulando de contentamento pela novidade do passeio noturno. Quando a porta da van estava a se fechar, o homem esquálido desliza para o banco de trás como uma sombra, sem dizer palavra. Myo enfim nos revela que ele é o marido da empregada que cuida da Wai Wai enquanto ela vai trabalhar – a mesma que preparou o peixe esturricado. O casal tem três filhos. Ele trabalha como condutor de trishaw. Hoje ele não teve nenhum cliente e estava chateado. O dinheiro anda curto na família. Mas, pelo canto do olho, vejo no rosto magro do condutor de trishaw uma alegria infantil por aquela voltinha de carro na cidade, ao lado de pessoas tão estranhas, que vieram de um país chamado Brasil, do outro lado do mundo.

Dentro do carro Wai Wai está felicíssima e canta sem parar musiquinhas na língua tonal e melodiosa de Myanmar.

A porta da van se fecha e pela janela vejo passar as luzes da noite de Yangon. Naquele momento mágico, cercada pelo carinho e generosidade de tantas pessoas, sinto-me em casa. Um profundo sentimento de gratidão toma conta de mim.  Com um sorriso no rosto, repito mentalmente o nome com que fui batizada na inesperada festa de aniversário em Myanmar, como um mantra sagrado que não quero esquecer:

Thit Sar Shwe... Thit Sar Shwe...